Os portugueses são homofóbicos? «Sangue por todo o lado. Tudo por causa de um beijo»

A homofobia é uma forma de preconceito contra a homossexualidade que se pode manifestar de várias formas. Duarte, Ana, Inês e Daniela dão o seu testemunho sobre como é ser homossexual em Portugal.

Em 2004, Portugal alterou o artigo 13.º – O Princípio da Igualdade – da Constituição Portuguesa, que passou a incluir a orientação sexual entre as razões pelas quais «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever».

É permitido o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo desde junho de 2010 e a adoção de crianças por casais homossexuais entrou em vigor em março de 2016, depois de chumbada no Parlamento quatro vezes. Um estudo realizado pela ILGA Europa (ILGA: Associação Internacional de Lésbicas e Gays), em 2016, revela que os portugueses estavam entre os cinco primeiros povos no ranking do respeito pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais. A avaliação teve em conta 49 Estados europeus. Apesar destas transformações legislativas, estudos indicam que quase um terço dos portugueses associa a homossexualidade a uma doença.

«Camisola rasgada, sangue por todo o lado, oito pontos»

Duarte depois de ter sido agredido

Duarte, de 25 anos, e o namorado, Daniel, de 22 anos, foram brutalmente agredidos, em Coimbra, em julho do ano passado. A agressão aconteceu junto ao estádio da cidade, no Alma Shopping, depois de o casal se ter despedido com um beijo na boca. «Uma família de etnia cigana viu-nos e começou a insultar-nos. Nessa altura, o meu namorado já tinha ido para dentro do shopping», lembra Duarte. Naquele momento, ligou para Daniel e quando este chegou, o grupo começou a agredi-los. «Camisola rasgada, sangue por todo o lado, oito pontos. Foi esta a consequência de ter dado um beijo ao meu namorado», escreveu, à data, numa publicação no Facebook, que se tornou viral em pouco tempo.

«Os seguranças só apareceram quando os agressores se foram embora»

O jovem teve de ser assistido medicamente, porque os agressores espetaram-lhe um alicate na cabeça. Daniel ficou com marcas da sola dos sapatos dos suspeitos, que o pontapearam diversas vezes. «Os seguranças do centro comercial só apareceram quando os agressores se foram embora», refere. Duarte lembra que, no momento das agressões, várias pessoas estavam a assistir e «ninguém fez nada». «Eu recebi uma mensagem de um pai que me disse que tinha assistido a tudo, mas que não interveio porque tinha a filha bebé no carro e então não podia deixá-la sozinha. Pediu-me desculpa por isso», conta.

«Sofro de bullying desde que nasci»

O casal apresentou queixa na Polícia e o caso vai ser presente no Tribunal de Coimbra. Não sabe quando. «Os suspeitos já foram identificados, mas até agora ainda não recebemos nenhuma atualização do caso. Durante três meses, estivemos à espera de resposta da Segurança Social, para saber se tínhamos apoio para pagar o advogado. Até à data não há desenvolvimentos», lamenta Duarte. «Falou-se muito na altura, mas o caso morreu passado uma semana», diz, relativamente à exposição que este episódio teve. Esta é a situação «mais grave» que Duarte tem memória de ter vivido. No entanto, a violência verbal esteve sempre presente ao longo do seu crescimento. «Sofro de bullying desde que nasci», afirma.

«Só em 2018 recebemos 60 novos pedidos para apoio psicológico», Sara Malcato (ILGA)

Sara Malcato, psicóloga clínica e coordenadora de serviços na Ilga Portugal, associação que defende os direitos das pessoas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexo), revela que «só em 2018 recebemos 60 novos pedidos para apoio psicológico». Segundo a especialista, houve um aumento do número de pedidos de acompanhamento psicológico, um dos serviços que a ILGA dispõe, e de pessoas «cada vez mais jovens».

«A minha avó não reagiu muito bem. Afastou-se»

Inês, de 17 anos, e Daniela, de 19 anos, namoram há um ano. Já foram alvo por «diversas vezes» de episódios homofóbicos. Dos vários, contam um que ocorreu no seio familiar. A avó de Daniela não aceitou a orientação sexual da neta. «A minha avó não reagiu muito bem. No início, não disse nada. Afastou-se. Mas houve um dia em que despejou um monte de coisas em cima de mim. Insultou-me.» A discriminação não se vive apenas no singular. Inês e Daniela também sofrem o preconceito enquanto casal. «Lembro-me de estarmos a ir para casa da Inês e de um grupo de miúdos começar a chamar-nos fufas, vacas, porcas.» De todas as situações homofóbicas que viveram, «nenhuma partiu ainda para a violência física.» Mas dizem-se preparadas porque, acreditam, «há-de acontecer».

Inês e Daniela estão «cansadas de viver numa bolha»

Para as jovens, a «homossexualidade ainda é vista como uma diferença». «Eu sei que a partir do momento em que nos consideram diferentes, as pessoas vão sempre comentar», refere Inês. «Há olhares que incomodam.» No início da relação, Daniela tinha medo de demonstrar o amor pela namorada em espaços públicos. «Tinha medo de que acontecesse algo.» Inês atenuava-lhe o receio. «Eu é que agarrava mais nela. Dizia-lhe ‘nós somos normais, vamos para a rua’.» Agora, dizem estar «cansadas de viver numa bolha». E que, por isso, já se habituaram a lidar com as «mentalidades fechadas». «É um bocado triste termos de nos habituar a esta situação, pela qual ninguém devia passar», reivindica Inês.

Somos um país homofóbico?

Apesar de ter sido alvo de agressões devido à sua orientação sexual, Duarte diz que, «no geral, Portugal não é um país homofóbico». «Não acredito que haja assim tanta gente com este tipo de ideias.» No entanto, a resposta de Inês e Daniela a esta pergunta é diferente. As jovens respondem em uníssono que «sim». «Muito!» Portugal, apesar de tudo, é um dos países mais avançados da Europa em termos legislativos. Para Sara Malcato, porém, dizer que a mentalidade acompanha a legislação é uma «falácia».

A homofobia pode «colocar em questão a própria orientação sexual» do agressor

Um comportamento homofóbico pode ser manifestado de variadas formas. Através da violência física, do insulto, da piada, entre outros. Para a especialista, a homofobia pode ser vista como um «medo» e pode «colocar em questão a própria orientação sexual» do agressor.

«Falta educar as pessoas desde cedo»

Os casais concordam que para combater a homofobia é «fulcral» começar a trabalhar com «as camadas mais jovens». Daniela e Inês consideram que «ainda há muito trabalho a fazer». «Falta educar as pessoas desde cedo. É perfeitamente normal amarmos quem quisermos», diz Inês. Para Daniela é também importante desmistificar a homossexualidade dentro da religião. «Portugal é um país maioritariamente católico. E a maioria das pessoas homofóbicas esconde-se atrás da religião.» Duarte refere que é uma questão da «educação» e dos «valores» que nos chegam pela mão dos pais. Conta que na família de etnia cigana que o agrediu, em Coimbra, havia uma rapariga de 15 anos. E terá sido esta a alertar para o facto de Duarte estar a beijar o namorado. «No final das agressões, lembro-me de estar a escorrer sangue da cabeça e de ela me vir pedir desculpa pelo que tinha acontecido», conta.

A sociedade portuguesa «ensina a pensar que todos somos heterossexuais»

A sociedade portuguesa é, de acordo Sara Malcato, heteronormativa. Por outras palavras, é uma sociedade que «ensina a pensar que todos somos heterossexuais». «Nunca paramos para pensar que a pessoa que temos à frente pode não ser heterossexual. Quando, de forma até não pensada, vemos uma rapariga e perguntamos ‘então, tens namorado?’, estamos a ter uma atitude de homofobia não intencional. A nossa educação é heteronormativa», explica.

«Houve um trabalho familiar para o meu pai perceber que ser homossexual não é nada de mais»

Duarte percebeu na adolescência que gostava de rapazes. «Aos dez anos já me chamavam nomes na escola. Mas eu só me apercebi que era homossexual aos 13. Fiquei assustado ao pensar na reação dos meus pais.» Duarte lembra o momento em que o pai descobriu que o filho era homossexual. «Tinha 16 anos e acordei durante a noite com ele a espancar-me.» Com a mãe, foi diferente. «Teve dificuldades em aceitar», mas apoiou «sempre» o filho e protegeu-o «muitas vezes da agressividade» do marido. «Agora as coisas estão melhores. Houve um trabalho familiar para o meu pai perceber que ser homossexual não é nada de mais», afirma Duarte. Daniel teve de assumir a orientação sexual aquando do episódio de agressão em Coimbra. A família «aceitou bem».

«Apercebi-me de que nunca me tinha sentido atraída por um rapaz»

Inês e Daniela confrontaram-se com o facto de gostarem de pessoas do mesmo sexo quando eram ainda crianças. «Sempre olhei de forma diferente para as raparigas na escola», diz Daniela. Na altura, «não sabia do que se tratava». «Ainda era muito miúda.» Decidiu ir pesquisar mais sobre o assunto e chegou a um entendimento: era homossexual, mas contou à mãe que era bissexual porque «era mais fácil para ela assimilar». «Assim, a minha mãe poderia colocar a hipótese de eu vir a namorar com rapazes.» A reação foi de «choque». Anos mais tarde, Daniela assumiu-se como homossexual perante a progenitora e, desde então, tem sido um processo de aceitação que está a «melhorar». Para Inês, a aceitação por parte da família foi «boa» e tem-se revelado «um grande apoio». «A certa altura, apercebi-me de que nunca me tinha sentido atraída por um rapaz. Inicialmente, não achei normal e fui-me informar com a minha mãe.»

«Chegam ao pé de nós e perguntam-nos quem é o homem da relação»

O estereótipo que existe em torno de uma lésbica tem sido também algo com o qual Inês e Daniela se têm deparado. Inês veste-se com roupas mais clássicas e gosta de se maquilhar. Daniela assume-se mais «prática». Nunca gostou de se arranjar e por isso acabou muitas vezes por denunciar a orientação sexual para as pessoas. Acham que «tem de haver sempre uma machona». «Chegam ao pé de nós e perguntam-nos quem é o homem da relação. Se eu quisesse um homem, estava com um homem», afirma Inês.

«Sou uma mulher e gosto de outra mulher. É só isso»

Apesar dos olhares alheios à sua passagem e de comentários «inapropriados», as estudantes sentem-se confortáveis e confiantes em relação à orientação sexual. «Sou uma mulher e gosto de outra mulher. É só isso», sintetiza Inês. Duarte, Daniel, Inês e Daniela apenas querem ser livres para amarem e demonstrarem esse amor sem medo de sofrerem represálias. «Não quero que as pessoas que me agrediram se apercebam do mal que fizeram só por causa da lei», diz Duarte. As duas jovens acrescentam que não querem habituar-se a «situações homofóbicas», por que «ninguém devia passar». «Só queremos ser felizes e isso não incomoda ninguém.»

Texto: Jéssica dos Santos com Cynthia Valente | Fotos: Marco Fonseca e Instagram | Vídeos: António Guimarães

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