David Fonseca: «Nunca quis ser músico. Mas, neste momento, é o que eu faço e está tudo bem.»

É assumidamente tímido e extremamente reservado. Daí que David Fonseca não goste muito de falar sobre si.

David Fonseca é Mog, um de três aliens que viajam até ao planeta Terra à procura de um colchão de massagens que viram num canal de televendas. É esta a personagem a que o cantor empresta a voz no novo filme de animação «Uma Aventura do Outro Mundo».

No mesmo projeto está Ana Sofia Martins. Mas sobre a vida amorosa, David não fala. Prefere realçar o gozo que lhe dá ir ao cinema com os dois filhos – um de 13, outro de 10 anos – ver os filmes aos quais empresta a voz.

Os 20 anos de carreira que celebra este ano, foram tema de conversa. Apesar do músico dizer que não liga a efemeridades. Daí até à infância foi ‘um pulinho’. Filho de um pai bancário e de uma mãe professora de infância, David conta que sempre teve o apoio da família quando escolheu a música para profissão.

Não era isso que queria para si. Mas ainda bem que o fez, pois a música é aquilo que o liberta da sua timidez extrema.

Sendo pai, deve dar um gozo maior ir ao cinema com os filhos ver estes filmes, onde empresta a voz a alguns personagens…
Sim, eles gostam muito de ver, mas acho que não me reconhecem. E eu percebo que não me reconheçam. Porque, de facto, não pareço eu. Eu próprio, às vezes, não me reconheço. Chegou a acontecer no segundo filme que fiz, quando o fomos ver ao cinema, às tantas, estava a pensar: ‘será que eles chamaram outra pessoa para fazer a voz?’ Mas era eu. Mas era tão diferente.

Não reconhecem, mas sabem que é o pai, certo? E acham graça?
Sabem e acham. Mas as pessoas é que acham que estas profissões são mais interessantes para os miúdos e não o são, necessariamente. São interessantes no ponto em que qualquer profissão dos pais é interessante para os filhos, que é praticamente nenhuma. «O facto de ter uma profissão ligeiramente diferente da maioria dos outros pais, não faz com que os meus filhos vejam isso como algo interessante»

Mas ter um pai que é um músico conhecido, que dá concertos, que tem esse ar ‘cool’… 
Acho que eles olham para mim da mesma forma que eu olhava para o meu pai. Não há nada de extraordinário nisso.

Mas é um pai ‘cool’, descontraído ou mais rígido? 
Qual é o interesse que eu tenho em expor essa parte da minha vida?Só me conhecem como músico porque é essa a parte que que eu quero mostrar. E nada mais.

Diz que as músicas que escreve são sobre si, sobre o seu lado mais pessoal e íntimo. Como é que uma pessoa tão reservada se expõe tanto nas letras das músicas?
Um dos grandes truques da música pop é a música poder ser acerca de quem a ouve. E não, necessariamente, acerca de quem a faz.

Quer explicar?
Há muitos anos, quando comecei a fazer isto, pensava que as músicas eram sobre mim. São, claro, sobre coisas que sinto, são coisas pessoais que ponho lá. Mas quando elas saem para fora, já não são minhas. Há uns anos, quando fiz o primeiro disco havia uma música chamada ‘Angel Song’. Essa  canção era sobre algo muito específico da minha vida pessoal. E, passado um ano dessa canção ter saído, recebi uma carta de uma pessoa, que era mãe de um miúdo. O miúdo tinha tido um acidente e tinha ficado em coma. A mãe escreveu uma carta a dizer que ele era um dos maiores fãs dos Silence 4 e que tinha posto o rádio ao lado dele a tocar as músicas da nossa banda. E ela estava plenamente convicta que era a música Angel Song que o tinha acordado, porque era a favorita dele. Eu não sei se ele acordou por causa da canção. Mas posso assegurar uma coisa: que a historia dessa canção é muito melhor do que aquela sobre a qual eu escrevi. E isso fez-me aprender uma coisa.

O quê?
Dou o máximo de mim, da minha forma pessoal de ser,  nas canções, mas nunca o suficiente para elas serem só sobre mim. Porque todas as canções têm a potencialidade de serem muito mais do que aquilo que  alguma vez sonhei. E isso nada têm a ver comigo nem com o meu talento para a fazer ou não.  Tem muito mais a ver com o talento para a ouvir e da sorte que posso ter de a canção se encostar na vida de uma pessoa. E isso fez-me perceber que ao escrever canções devo ser o mais pessoal que consiga, mas também o mais vago. Por isso é que há discrepância entre as duas coisas.

Este ano celebra 20 anos de carreira?
É verdade, mas não ligo a datas. Mas é sempre um marco, nem que seja para o meu manager e para a minha editora me dizerem que eu tenho 20 anos de carreira e que tenho de fazer alguma coisa sobre isso.

E vai fazer?
Provavelmente. Não ligo porque as comemorações de efemérides – a não ser quando se faz anos, porque devemos celebrar o facto de estarmos vivos – são, para mim, formas de se olhar para trás. E eu não tenho essa tentação. Acho mais interessante fazer coisas novas do que lembrar o passado. É mais chato. E isso já tenho de o fazer nos concertos. Por isso é que este ano fiz questão de lançar um disco novo.

Não deveria comemorar o facto de estar há 20 anos sempre na mó de cima do panorama musical?
Sim. São 20 anos e devo enaltecer as coisas que tenho feito. Não quero é que este ano seja todo à volta disso. Existe uma grande resiliência na minha pessoa para continuar aqui. Também, não gosto de palmeiras nem de dormir à sombra delas. O que acho que acontece muitas vezes é que as pessoas pensam demasiado na sua auto-relevância. Acho que ando por aqui há tanto tempo porque, cada vez que faço uma coisa nova, ela é efetivamente nova para mim. Não é baseada na relevância que tenho ou nos graus que subi. Não julgo que está tudo adquirido. Mas se continuo a fazer isto é porque, se calhar, alguma relevância tenho no panorama. Agora, não acho que isso seja uma coisa que deva de contemplar como um dado assumido. No fundo, é só musica. Há outras coisas que acho mais importantes no mundo do que fazer musica. E algumas ainda espero vir a fazer.

Como por exemplo?
Nunca quis ser músico. Uma das coisas que mais gostava de fazer era fazer fotografia, estar mais ligado ao mundo da arte. Gostava de poder usar o meu tempo noutro sentido. Mas, neste momento, é o que eu faço e está tudo bem. As coisas correm-me bem, gosto de o fazer.

Gostava de ser apenas fotógrafo?
Sim, gostava. Mas isso seria uma vida muito complicada e muito mais ausente de casa. Um fotografo é, por natureza, uma pessoa mais solitária e teria de estar quase sempre em viagem.

Porque foi para músico, então?
A profissão de músico é uma forma muito dinâmica de eu combater a minha timidez. É quase como se fosse obrigado a fazer aquilo. Porque, se dependesse da minha personalidade mais tímida, nunca passaria de fazer apenas a música (e nunca iria cantar em cima de um palco). E a fotografia iria trancar-me, claramente, dentro desse universo. E essa é uma das razões porque prefiro fazer isto.

Portanto, não foi uma vocação. Foi mais uma espécie de plano bem estruturado…
Tenho uma timidez muito grande com o mundo em geral. Sempre fui assim desde miúdo. E a música não foi nada mais do que uma plataforma maravilhosa para sair desse plano. A pessoa que eu era quando comecei a fazer isto, não tem nada a ver com o que sou agora. E devo-o à forma como a música sempre me empurrou para situações completamente desmedidas. Já fiz maluquices na minha vida em nome da música que nunca na minha vida faria numa situação normal. Desde andar vestido de cão não sei onde ou vestir-me de drag queen. Mas ainda bem que o fiz.

E um pai bancário não fica chocado as maluquices de um filho músico?
Não, não. Tenho todo o apoio dele, aliás sempre o tive desde o início, da minha família toda. Eles sempre souberam que eu era um miúdo diferente.

Diferente como?
Tinha ideias diferentes e queria fazer as coisas também de forma diferente. E isso acabou por se transportar para a escola. Os meus cursos já foram dentro do universo artístico. Portanto, desde o início que os meus pais sabiam que a minha formação já me estava a apontar para uma área que eles não tinham muita experiência. A minha mãe era professora primária e o meu pai bancário. Mas apesar de sempre me terem apoiado, ainda assim, não era uma coisa que se esperasse muito vindo de uma pessoa que mora em Leiria, que era um meio pequeno. A música era um hobbie para a maior parte das pessoas. Talvez, dentro da cidade, eu tenha sido a primeira pessoa a mostrar que se pode pensar numa coisa e que ela se pode tornar mesmo real, do ponto de vista profissional. Mas ser músico, no sítio onde estava, não era uma ideia plausível. E por isso compreendo o medo que os meus pais tinham, às vezes, que eu entrasse neste meio. Mas, de outro ponto de vista, eu também nunca pensei em fazer disto uma profissão e, no entanto, ainda aqui estou.

Mas cantava, ao menos, em pequeno?
Não. A única coisa estranha que fiz quando miúdo foi dançar breakdance. Por isso digo muitas vezes: se entrasse numa máquina do tempo e fosse ao liceu, quando tinha 12 ou 14 anos, e entrasse na minha turma e apontasse para os miúdos que um dia viriam a cantar em cima do palco, podes ter a certeza que eu era o último.

Que tipo de miúdo era?
Não era um miúdo que jogava à bola, por exemplo. Ainda hoje não sei o que é um fora de jogo. Nem brincava às lutas. Os miúdos gostavam de fazer essas coisas, mas eu não era o prototipo de miúdo. Era tímido, nerd, de óculos, era bom aluno, sempre metido no meu universo, falava com pouca gente, só com os outros nerds. Era a antítese daquilo que vim a representar. E, às vezes, ainda estou com algumas dessas pessoas… eles ficam muito surpreendidos. Acho piada encontrá-los e dizer-lhes: «vocês sabem bem o puto que eu era e agora vejam lá o que me aconteceu!»

Tem uma espécie de dupla personalidade. É mesmo do signo gémeos!
Não acredito nos signos. E, credo, não tenho dupla personalidade, nem uma dualidade em mim. A maior parte dos artistas são tímidos por natureza.

Não acredita, mas foi o que deu origem ao nome do novo álbum, Radio Gemini…
Influenciou, sim. Apesar de não acreditar, gosto muito daquilo que eles representam. E gostava muito da ideia de gemini.

Texto: Inês Neves; Fotos: Impala

 

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