Helena Magalhães: “Nós mulheres temos que ser muito mais empáticas umas com as outras”

Ferozes é um livro escrito por Helena Magalhães que, de forma intimista e com um toque de humor, nos dá a mão, qual amiga conselheira, e nos leva pelas histórias da sua vida.

Helena Magalhães:

Ferozes é um livro escrito por Helena Magalhães que, de forma intimista e com um toque de humor, nos dá a mão, qual amiga conselheira, e nos leva pelas histórias da sua vida. Com elas refletimos sobre o poder patriarcal e como as mulheres ainda vêm hoje em dia a sua voz ser silenciada em tantas áreas da vida. Em entrevista ao Portal Impala, a escritora fala reflete sobre a sociedade e o seu livro.

Quando é que foi o momento em que foi claro para ti que o Ferozes era um livro necessário e que o devias escrever?

Eu acho que não houve assim nenhum momento em que eu achasse que era necessário, mas quando estávamos no processo inicial de ver o que é que íamos fazer com este livro, porque inicialmente o objetivo da Penguin era republicar o meu primeiro, porque eu entretanto tinha ficado com os direitos dele para mim… E estávamos a ver o que é que eu queria repescar do primeiro e depois percebi que já não o queria publicar, já não fazia sentido para mim. Isto foi no final de 2020… ali no mês de dezembro e eu nessa altura li uma série de de autobiografias… Li a da Glennon Doyle, da Dolly Alderton… Li ‘As coisas que os homens me ensinam’… Ou seja, li naquela altura uma série de livros na primeira pessoa e aquilo fez um clique para mim que era ‘ninguém escreve na primeira pessoa em Portugal’ porque somos um povo super conservador e é por isso que eu acho que também estamos a atravessar um período em que tanta coisa está a vir ao de cima, mas depois é tudo escondido para debaixo do tapete. Nada é aprofundado, as mulheres continuam a ter medo de falar, continuamos a ser um país com uma mentalidade supermachista… Comecei e refletir em toda a experiência que eu tinha tido no meu trabalho na imprensa e como isso era um problema. A minha experiência tinha sido entre 2011 e 2014, estávamos em 2020 e naquela altura senti que nada tinha mudado em Portugal. Isso culminou também com todo aquele escândalo do assédio na televisão. Esteve ali duas semanas a ser falado até ao limite e depois foi tudo ocultado. Foi altura em que eu comecei a pensar que se calhar fazia falta escrever alguma coisa sobre isto em Portugal. Não é que a minha voz seja uma Cristina Ferreira, sei lá. Mas eu acho que todas as vozes importam por mais pequenas que sejam e isto pode ser uma abertura ao diálogo de tudo o que está errado e como é que é ser mulher em Portugal. Porque ainda é muito difícil em todos os níveis. E eu queria partilhar algumas situações, algumas histórias, algumas reflexões sobre como nós continuamos a ser altamente silenciadas em todas as esferas da nossa vida. Um pouco no mundo inteiro, mas eu acho que em Portugal ainda estamos longe de ter um diálogo que seja inclusivo e de haver uma mudança de mentalidades. Eu acho que isso só vai acontecer na geração a seguir a nós – o que é bom – mas eu achei que podia ser uma abertura para se iniciar este diálogo do que é ser uma mulher em Portugal em 2021 e tudo o que significa. O bom e o mau, porque não é um livro triste.

Já tinhas pensado encontrar a tua história de assédio laboral ou sempre foi algo que custou reviver?

Nunca pensei sequer em contar porque achei que não ia acrescentar nada. Toda a gente tinha histórias de empregos altamente tóxicos e miseráveis mas no início deste ano fez-me sentido… Eu acho que a pandemia fez com que imensa gente começasse a refletir nos seus empregos e eu tenho imensas amigas que perceberam que querem continuar em teletrabalho e perceberam que os empregos e os ambientes de trabalho são super tóxicos e de repente pensei que tinha ali uma oportunidade. Neste momento, uma vez que passámos por um período tão estranho de tanto isolamento, acho que aconteceram duas coisas: as pessoas deram muito mais valor aos ambientes de trabalho. À convivência, a estarmos com outras pessoas, mas por outro lado eu acho que muita gente percebeu como estava em empregos tóxicos com ambientes de trabalho que nos fazem super mal. Quando eu estava a escrever o Ferozes pensei que já que estou a ter esta oportunidade e a Penguin está a dar liberdade para escrever o que me apetecer e fazer deste livro o que eu quiser, eu acho que posso usar o espaço para falar sobre isto porque o que eu vivi foi um assédio altamente psicológico. Hoje em dia eu penso que se eu não tivesse a estrutura psicológica que eu tinha – e também graças à minha família que me deu sempre liberdade para fazer o que eu quiser, sempre me motivou e sempre me fez acreditar em mim – acho que me teria ido muito abaixo. E era só um emprego. Eu queria mesmo mostrar como um emprego não nos define, o assédio laboral não faz de nós… Ás vezes nós estamos dentro das situações é difícil ver-nos fora delas porque estamos lá dentro e aquela é a nossa realidade. Quando estávamos lá a trabalhar, por mais que as pessoas à nossa volta – minha e das colegas – nos dissessem que aquilo não era normal… Passávamos lá, 10 ou 12 horas por dia, minados com aquela toxicidade… E quando eu saí de lá, ao fim de um mês lembro-me de me questionar como é que tinha estado ali três anos. Portanto, achei que faria sentido contar esta história agora porque muita gente se iria identificar, porque o assédio laboral é tão comum e fala-se muito pouco sobre isso por que as pessoas têm medo de perder o emprego. Depois de o livro ser publicado já falei com tanta gente que já me contou histórias mirabolantes e eu acho que as pessoas precisam de ler e de saber que não estão sós.

Qual foi a história que mais te custou partilhar?

A história que mais me custou partilhar e que estive até à última sem decidir se ia ou não partilhar foi a história com que o livro começa, de assédio sexual. Porque durante muito tempo pensei ‘isto já tá mais do resolvido dentro de mim, não não é uma coisa que pese na minha vida’. Eu queria falar sobre trauma mas não queria dizer o que é que era. Entretanto quando estava de volta disto eu percebi ‘é incrível, já passaram 12, 13 anos e eu achava que estava tudo resolvi dentro de mim quando não está, porque eu continuo sempre em círculos à volta do mesmo’. E foi quando eu pensei estar que se calhar eu podia escrever sobre isso abertamente. Por isso é que eu depois quis muito incluir a questão da sorte porque durante muitos anos aquilo que eu pensava para mim era ‘mas eu tive sorte, eu não me posso queixar’. Vivi estes 10/12 anos a achar que estava tudo resolvido dentro de mim, nada daquilo tinha tido impacto, até depois com a psicóloga termos ido a tantas camadas que eu pensei’ caramba, tenho 35 anos e isto ainda tem tanto impacto em mim’. Houve uma coisa muito engraçada que foi a própria editora, quando estávamos a trabalhar no livro, ela diz-me ‘andas aqui às voltas com isto mas nunca queres usar a palavra violação. Porque ao fim e ao cabo, é’. Foi o que mais me custou escrever mas acabou por ser o ponto de partida certo para o livro porque é o que é o que é. E eu neste mês recebi tantas ouvir tantas mas tantas mensagens de mulheres que passaram por situações horríveis e eu digo sempre que eu tive sorte porque depois de lermos outras coisas, eu sei que eu tive sorte. Mas tudo é válido. Eu queria muito também passar essa mensagem, de como o trauma é válido independentemente do que seja. Não sei se em Portugal a mentalidade vai mudar tão cedo assim e é assustador pensar que apesar de nós até vivemos num país super seguro – dos países mais seguros para se viver – as mulheres continuam a ser assediadas, violadas, maltratadas… Quando escrevi fiquei mesmo emocionada comigo própria e pensei que ter escrito também me tinha feito bem. Muito poucas amigas sabiam daquela história e muito pouca gente do meu círculo pessoal sabia. Algumas colegas leram o livro e houve uma delas que disse uma coisa que me marcou imenso. Disse: “Lena, quando entrámos no último ano lembro-me de pensar que tu estavas super diferente. De repente tinhas mudado a tua roupa, estavas completamente diferente e eu lembro-me de pensar ‘aconteceu-lhe qualquer coisa’, mas também não perguntei’. Hoje em dia acho que devia ter perguntado’. E eu acho que isso também é uma mensagem super importante.

Helena Magalhães, autora do livro Ferozes

O que é que achas que enquanto mulheres podemos fazer mais para evitar que histórias de abusos e assédios se repitam?

Eu acho que nós mulheres temos que ser muito mais empáticas umas com as outras em todas as situações. Muitas vezes a nível laboral sabemos coisas que se estão a passar com outras mulheres mas não nos queremos meter para que isso também não nos prejudique a nós.  Eu queria mesmo muito mostrar com o Ferozes que a minha vida não estaria onde está agora se não fosse por todas as mulheres com quem eu me cruzei. As mulheres são a força impulsionadora umas das outras.

Tens tido feedback de homens que leram o teu livro?

Não, muito poucos.

Achas que era uma mais-valia que o lessem?

Claro que sim. Porque é aquela ideia mesmo básica de tudo isto. Todas as mulheres conhecem uma mulher que sofreu algum tipo de agressão sexual, mas nenhum homem conhece outro homem que seja um agressor sexual. Porque os homens não falam sobre isso. É como se fosse uma coisa das mulheres porque o fim e ao cabo, a forma como a sociedade também fala sobre isto é sempre tudo em cima das mulheres. É sempre a violência contra as mulheres, é sempre as mulheres que foram violadas. É sempre as mulheres, como os homens não fizessem parte do problema.

As mulheres da tua família tiveram oportunidade de ler o livro? Quais foram as opiniões?

A minha mãe leu e é muito engraçado, porque ela teve uma infância muito complicada. Cresceu num orfanato porque a minha avó divorciou-se do meu avô e os filhos foram espalhados por aí, e ela está- me sempre a dizer que nada daquilo que ela leu acabou por ser assim muito novo para ela porque este já é um discurso que eu tenho todos os dias. Estou sempre a dizer ela tem que mudar, que ela pode fazer as coisas que ela quer, tem que se libertar das convenções… Mas, por exemplo, ela não sabia aquela história do assédio sexual e ela percebe por que é que eu não contei. Acho que muitas jovens adolescentes não contam aos pais porque ao fim e ao cabo não querem passar essa dor para as mães, não querem passar esse fardo, foi o que eu fiz. Mas estou sempre a dizer à minha mãe que ela tem de se libertar, apesar de saber que para a geração dos nossos pais, que tem agora 60 anos, é difícil conseguirem ver o mundo de outra forma.

É difícil verem o mundo de outra forma e entenderem esta “exposição”, porque é assim que muita gente o vê…

É exposição em Portugal. A cultura americana não é tão conservadora quanto a nossa. Cá dizemos coisas como ‘ai, falar de mim não, o que é que vão pensar’. Eu acho que os americanos têm uma cultura muito mais aberta, de contar as suas experiências pessoais e isso é também uma das razões porque eu tinha muito medo de publicar este livro. Porque nós somos um povo bastante conservador. Achei que pensariam ‘quem é ela para ir publicar agora uma autobiografia?’. Não sabia até que ponto é que ia ser um livro bem aceite. Mas aqui voltamos à mesma conversa de sempre. E a Cristina Ferreira é um exemplo disso. Se for um homem a escrever algo sobre ele próprio, é corajoso é arrojado… Se for uma mulher está a chamar a atenção, está a dramatizar. A Cristina Ferreira escreveu aquele livro sobre o assédio e foi todo aquele escândalo. E isto é um resumo deste livro, a forma como as mulheres são sempre silenciadas e colocadas em causa. Tinha muito medo por isso também, mas depois pensei que o livro poderia trazer mais de bom a quem o lê do que de mal à minha vida pessoal.

Achas que as redes sociais podem ser uma boa ferramenta para nos ajudar a tornar ferozes, por nos aproximarem?

Tem o bom e o mau, não é? Acho que as redes sociais mudaram a nossa sociedade para coisas muito boas. As redes socias têm capacidade de fazer as pessoas refletirem, descobrir coisas, saber o que está a passar no mundo… E vemos todas as coisas incríveis que têm acontecido no mundo apenas pelo poder das redes sociais e por as pessoas se reuniram, não é? Mas por outro lado, claro que as redes sociais também são o que de pior existe. Acho que o importante, principalmente para as novas gerações, e não está a ser feito, é ensinar a usar as redes sociais. Porque obviamente que ainda não se sabe o impacto que as redes sociais vão ter no futuro. A minha geração é a última que teve o antes e o depois. É bastante assustador ver como a geração abaixo de nós se comporta nas redes sociais e para eles são coisas normais porque cresceram com isso. As redes sociais trouxeram toda as sexualização das raparigas e toda esta pressão da beleza, do corpo e da imagem que vai ter impactos devastadores a longo prazo na saúde mental.

No livro falas de literatura e da falta de representatividade. Que mulheres gostavas que as próximas gerações tivessem oportunidade de ler?

Está longe de lá chegarmos mas eu quis muito aproveitar o meu espacinho no livro para falar sobre isso porque às vezes pode parecer uma coisa muito pequenina do género ‘ah, agora estão-nos a chatear porque não temos mulheres nos planos curriculares’, mas se nós pensarmos no impacto que isso tem nas raparigas que aos 15 anos já acham que a sua voz não importa porque a escola – que é onde elas vão formar a sua personalidade a sua identidade – está-lhes a dar apenas o mundo pela visão dos homens. Se pensarmos nos efeitos a longo prazo que isso tem, pode parecer apenas uma gota no oceano, mas isto tem imenso impacto na nossa identidade enquanto mulheres e na forma de ver como a nossa voz importa. Então, quando eu falo sobre isso, queria muito que as pessoas refletissem como é tão importante que na nossa fase crucial de crescimento, entre os 14 e os 18 anos, é importante ler mulheres. Para que essas jovens se sintam compreendidas e se identifiquem com as vozes das mulheres. Quando me dizem ‘ah, hoje e dia já se lê Lídia Jorge…’ Não lêem porque não está no plano curricular. É sugerido no plano nacional de leitura. Mas a minha questão é: uma rapariga de 15 anos vai-se identificar com a Lídia Jorge? Não vai. Porque a Lídia Jorge escreveu – e foi uma voz incrível, claro que sim – sobre os problemas da sua geração, que a geração de hoje já não se identifica. Claro que temos de aprender sobre os autores do século passado e o peso que tiveram na nossa identidade enquanto país, mas também temos de ler autores de hoje e as vozes de hoje, que acabam por ser as que vão cativar mais os jovens para a leitura, porque se vão identificar. Ainda no outro dia estava com uma amiga na Fnac a ver as prateleiras dos autores nacionais lusófonos e eu disse: ‘vamos fazer uma aposta, quantas mulheres achas que estão aqui’. Começámos a contar e aquilo era homem, homem, homem, homem, mulher. Homem, homem, homem, homem… Eram umas 10 mulheres para 50 homens. Esse é um dos grandes problemas, também. Nãe se lêem mais mulheres porque ainda se publicam poucas mulheres. E isso acontece por falta de oportunidades. O mercado literário em Portugal é muito dominado pelas vozes masculinas e às vozes masculinas é sempre dado muito mais crédito do que às femininas. Se formos olhar para os prémios literários em Portugal são dados 90% das vezes a homens. Em todo o mundo são as mulheres que mais compram livros. Então, se são as mulheres a maior força desta industria, porque é que as mulheres também são tão penalizadas? Isto mais em Portugal. O próximo passo tem de ser uma reforma no plano escolar. Temos que ler as vozes da nossa história e temos que ler as novas vozes. Mostrar aos jovens de hoje livros atuais que são vozes relevantes na língua portuguesa. O mundo não parou em Eça de Queirós, acho que é o último que nós lemos na escola.

Texto: Marta Amorim | Foto: Aline Macedo Fotografia

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