Descida do caudal do Zêzere faz emergir ruínas de aldeia

Submersa em 1954, quando se fecharam as comportas da Barragem do Cabril, no Zêzere, a aldeia do Vilar emergiu, na forma de ruínas, com a descida do caudal do rio.

Descida do caudal do Zêzere faz emergir ruínas de aldeia

Submersa em 1954, quando se fecharam as comportas da Barragem do Cabril, no Zêzere, a aldeia do Vilar, no concelho de Pampilhosa da Serra, emergiu, na forma de ruínas, com a descida do caudal do rio. Nascido e criado naquela aldeia que a água engoliu, é com relutância que Manuel Barata, de 77 anos, morador em Portela do Fojo, no mesmo concelho, olha para o que designa de esqueleto. “Não gosto de ver aquilo assim. Lembra-me que passou ali a guerra, porque eu também andei na guerra”, afirmou à Lusa. Da aldeia, apagada e recolocada agora no mapa, Manuel Barata recordou as pessoas que ali moraram. Fazendo uma viagem ao passado e aos seus 10 anos, “quando a barragem encheu” e ele, pais e irmã tiveram de deixar Vilar.

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Assim como a família de Manuel Barata, todas as outras — “30 e tal” – tiveram de sair. “Avisaram para a gente sair. Pagaram o que eles quiseram”, disse o antigo emigrante. Lembrando quem ameaçou ali morrer afogado se não lhe pagassem o que exigia. “A água já estava a chegar ao primeiro andar e ele estava cercado. Disseram ‘pode sair, que a gente dá o que pediu’. E saiu de barco”, contou Manuel Barata. Da “povoação tão pequena” lembra, por exemplo, que “havia dois lagares de azeite”. Atestando a importância da agricultura e floresta – “era azeite, milho, pinhal, mel”. Concluindo: “Era a povoação do concelho de Pampilhosa da Serra que vivia melhor”.

“Avisaram para a gente sair. Pagaram o que eles quiseram”

“‘Azeiteiros do Vilar’ era a alcunha que nos davam”, declarou. Explicando que “as ruínas das casas de habitação já estão todas à mostra”, mas o Zêzere ainda não destapou moinhos, “pelo menos dois”, nem os dois lagares de azeite. O ressurgimento da aldeia não é coisa nova. No passado, sem conseguir precisar quando, o morador garantiu que “já aconteceu assim como está”. E, vendo o leito do rio, só se lembra uma vez. Destacando que no verão “é uma invasão de pessoal” devido à praia fluvial. Manuel Barata fica agora na dúvida: “Se não houver água, não sei se vêm ou se vêm mais para admirar aquilo”. Mas deixou escapar. “Mas virem, vêm”, disse.

Foi o que fez Paulo Caracol, de 59 anos, morador no vizinho concelho de Góis. Que passeou pelas ruínas, relatando as descobertas: “Sítios que deviam ser quartos, janelas, fornos, caminhos estreitos”. “É um misto, alegria de ver coisas que fazem parte da História da região e tristeza por estar sem água”, referiu, quem viu a aldeia de Vilar, ou melhor, o que resta dela, pela primeira vez. Indiferentes ao interesse que as ruínas suscitavam, três homens do concelho da Lousã, todos reformados, estavam na pesca desportiva à “caça” de bogas, carpas ou achigãs. Certos de que menos água no rio “não faz diferença” para esta atividade. “É igual, o peixe continua cá”, disse um deles. Outro atirou que “o peixe está mais junto”. Ao mesmo tempo que lamentava haver “pouco peixe à vista de há 20 anos”.

“É um misto, alegria de ver coisas que fazem parte da História da região e tristeza por estar sem água”

No local, a piscina flutuante está agora em terra firme “à espera de que a água suba para ficar a flutuar”, disse à Lusa o presidente da Junta de Freguesia de Portela do Fojo – Machio, Henrique Fernandes Marques. Esperançado de que o nível do rio suba e o turismo também. “É muito importante para nós que, com a Câmara, temos investido em infraestruturas no local”, declarou o autarca. Exemplificando a instalação de uma churrasqueira, bar e parque de merendas, e mais recentemente a reabilitação da estrada da Portela do Fojo até ao Vilar. Segue-se a colocação de uma plataforma para acostagem de embarcações. Segundo Henrique Fernandes Marques, a cota máxima do Zêzere naquele local situa-se perto de um nicho das “Alminhas”. E, apesar de distarem pelo menos 150 metros até onde agora está o nível do rio, é de esperança que fala. Apontando que ainda falta “março, abril” para chover e dizendo o provérbio “abril, águas mil”.

Em Figueiró dos Vinhos já quase se pode atravessar a pé o rio Zêzere

“Agora ainda não vai, mas breve já vai”, garantiu José Emílio. Com o conhecimento dos seus 72 anos, ele que nasceu “quase à borda de água”, nos Caboucos, freguesia de Arega. E que noutras ocasiões, quando o nível da água do Zêzere desceu de forma acentuada, atravessou o rio de trator e a pé Quando a reportagem da Lusa o encontrou, José Emílio já tinha deslocado o seu barco a remos para água. “Fui pô-lo para a água, porque o rio desceu e [o barco] tinha ficado em terra”, afirmou José Emílio. Que tem “licença para a pesca, para lançar rede ao rio”. Não o faz porque não tem água.

“O peixe está todo para baixo. Procura sempre a fundura”, explicou. Desfiando as consequências da seca ou da falta de chuva para a contínua descida do nível da água do rio e para a aridez dos solos nas imediações. Segundo José Emílio, “é mau para toda a gente” e “vai dar um prejuízo de todo o tamanho”. “Quando o rio está cheio, vem muita gente. Agora vem gente, porque nunca viu o rio assim”, desabafou. Referindo que “se o rio encher até ao normal, como pertence, a casa do Clube Náutico fica isolada”. Ana Paula, de 50 anos, a trabalhar no restaurante junto à foz, falou em desolação. Enumerando as atividades que o estado do rio leva consigo, do comércio à agricultura e ao turismo. E depois há “os animais, a natureza”, continuou.

 “Vai dar um prejuízo de todo o tamanho”

Do turismo, Ana Paula, confiante de que a chuva comece a cair, adiantou que as “pessoas deslocam-se pela curiosidade”. Foi o que sucedeu com Maria Oliveira, de 23 anos, de Alvaiázere. Que repetiu por estes dias a viagem que tinha feito em setembro à Foz de Alge, para confirmar, ao vivo, o que já tinha visto em imagens. “Em quatro meses passou-se isto?”, questionou. Repetindo não acreditar que “isto estivesse assim”, que o rio que então fotografou e no qual andou de canoa está muito mais vazio, que a paisagem circundante está menos verde.

O presidente do Clube Náutico de Figueiró dos Vinhos, António Dias, também falou em desolação. “É uma desilusão total, fartamo-nos de trabalhar para nada. O arranjo de uma plataforma para acostagem de embarcações, como aquela que tivemos de a desmembrar toda, é uma despesa enorme e um grande transtorno para o clube”, afirmou António Dias. António Dias, que trabalhou para a EDP e que foi “criado no rio”, explicou que perante uma situação destas é “com grande mágoa” que vê tudo ficar da forma que está. “Nós que somos criados no rio ganhamos amor a tudo aquilo (…). As pessoas que lá vivem não podem usar o rio nem para tirar a água. A agricultura que bombeia água do rio e neste momento é impossível também pescar. E a seguir vêm os fogos e não há água sequer para os meios aéreos, em caso de incêndio, atuarem”, elencou. Acrescentando também o impacto no turismo que “é péssimo”.

“As pessoas que lá vivem não podem usar o rio nem para tirar a água”

É um “somatório de preocupações”, resumiu o presidente do Clube Náutico. Fonte da Câmara de Figueiró dos Vinhos expressou à Lusa preocupação face à falta de água no rio Zêzere. Lembrou os impactos que a situação pode vir a ter no turismo no concelho. E manifestou satisfação pelo anúncio do Governo de que a Barragem de Castelo de Bode deixará de produzir energia elétrica. Figueiró dos Vinhos é um dos municípios abrangidos pela albufeira de Castelo de Bode. O Governo restringiu na terça-feira (1) o uso de várias barragens para produção de eletricidade e para rega agrícola devido à seca em Portugal continental. Para já, há quatro barragens cuja água só será usada para produzir eletricidade cerca de duas horas por semana, garantindo “valores mínimos para a manutenção do sistema: Alto Lindoso e Touvedo, no distrito de Viana do Castelo, Cabril (Castelo Branco/Leiria) e Castelo de Bode (Santarém).

 

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