«Após um aneurisma, voltei a vestir-me e a escrever através da Terapia Ocupacional»

O Portal de Notícias foi esclarecer com terapeutas, utentes e especialistas o que é Terapia Ocupacional, para quem se destina e onde a podemos encontrar.

«Após um aneurisma, voltei a vestir-me e a escrever através da Terapia Ocupacional»

Já ouviu falar de Terapia Ocupacional? Não, não é uma área da fisioterapia nem é uma medicina complementar. A Terapia Ocupacional é uma área da saúde ainda pouco valorizada no nosso País. No entanto, milhões de pessoas já usufruem desta terapia e são reabilitadas através dela. Realizada por profissionais de saúde, esta pode ser uma terapia essencial para qualquer um de nós, com a finalidade de atingirmos uma melhor qualidade de vida e funcionalidade.

Por definição, a Terapia Ocupacional atua no tratamento e reabilitação de pessoas de todas as idades, de modo a facilitar e capacitar as mesmas para a realização das actividades do dia-a-dia que possam ter deixado de conseguir fazer devido a alguma condição de génese motora, cognitiva, emocional ou social. Estas incapacidades podem nascer com a pessoa, desenvolverem-se com a idade ou surgir devido a um acidente, doença, trauma ou lesão.

“Toda a nossa rotina é composta por ocupações, desde que nos levantamos até que nos deitamos. Tomar banho, comer, escrever, trabalhar, fazer desporto e realizar atividades de lazer, são tudo ocupações que todos nós temos no nosso quotidiano. Quando alguém deixa, por algum motivo, de conseguir fazer atividades que são para si são essenciais ou importantes, os terapeutas ocupacionais tentam recuperar essas funções ou competências para que a pessoa volte a realizá-las”, explica ao nosso site Vanessa Gaio, terapeuta ocupacional há quase cinco anos.

A profissional do centro de dia do Centro Social Paroquial de São Brás, na Amadora, sublinha que o terapeuta ocupacional trabalha “com todas as idades sempre que haja algo na sua vida que o impeça de fazer as suas ocupações normalmente”. Existem várias situações em que é comum a intervenção de terapeutas ocupacionais. Na pediatria, estes profissionais são geralmente essenciais na reabilitação de bebés ou crianças em casos de atraso global do desenvolvimento, síndrome de down, paralisia cerebral, autismo e dificuldades de aprendizagem. Em casos de pessoas que sofrem acidentes cardio-vasculares, neurológicos ou ortópedicos, a atuação destes terapeutas também pode ser crucial para a sua recuperação. A Terapia Ocupacional também atua geralmente no que diz respeito a cenários relacionados com a geriatria (problemáticas específicas do envelhecimento), nomeadamente, casos de alzheimer, parkinson ou outras formas de demência. Na área da psiquiatria os terapeutas ocupacionais também podem ter uma intervenção fundamental no encontro do bem estar de doentes que sofrem de esquizofrenia, bipolaridade ou depressão, por exemplo.

“[A Terapia Ocupacional] foi essencial para mim”

Para perceber como é que a Terapia Ocupacional pode melhorar exponencialmente a saúde, o Portal de Notícias esteve à conversa com uma paciente que garante que esta foi essencial para a sua recuperação. Maria Silva (nome fictício), que por motivos pessoais preferiu manter a sua identidade anónima, explicou-nos que teve conhecimento da Terapia Ocupacional, pela primeira vez, após “ter tido um aneurisma que rebentou em julho de 2014”. A mulher de 74 anos conta que depois do incidente cerebral foi induzida em coma e que quando acordou “era outra pessoa”.

“Não conseguia andar, não conseguia comer ou vestir-me. Não conseguia lavar-me, nada”, começa por recordar Maria.

No Hospital Amadora Sintra, onde foi internada, Maria começou a fazer Terapia Ocupacional. Contudo, quando teve alta da unidade hospitalar parou a terapia. Um ano depois, em 2017, a paciente regressou às sessões e aos poucos voltou a conseguir comer, escrever, pentear-se e vestir-se sozinha.
Tendo tido conhecimento desta área da saúde através de um fisioterapeuta, Maria garante “que as coisas melhoraram muito” e que foi “essencial” para a sua recuperação. Maria, que ainda hoje faz  terapia, diz que não há nenhum contra nesta forma de reabilitação e que não vai pensar duas vezes caso tenha mais algum problema na vida em que se justifique a intervenção da Terapia Ocupacional.

Mas na prática, como é que acontece?

Antes de se começar as sessões propriamente ditas é primeiro feita uma avaliação do paciente pelos terapeutas após uma apreciação do diagnóstico clínico. “Normalmente, primeiro, temos em conta os interesses, necessidades e prioridades da pessoa. Depois, avaliamos aquilo que é a ocupação a ser reabilitada. E por fim, examinamos o ambiente em que a pessoa está inserida. Estes são os três pilares”, explica Vanessa Gaio. “Nós vamos até à essência da pessoa e vemos como podemos ajudar para além da doença”, acrescenta.

“O objectivo é que a pessoa volte a ser autónoma. Ou seja, que não precise de nós”, sublinha ainda a terapeuta ocupacional de 26 anos. Após esta primeira consideração, o terapeuta ocupacional realiza um plano adaptando as atividades  usando as técnicas e instrumentos que conhece e domina.

A duração da terapia e o número de sessões depende muito das circunstâncias e da evolução de cada paciente. Em lares, os terapeutas ocupacionais acompanham sempre os utentes. Mas, por exemplo, um terapeuta também pode ir a casa de um paciente tratar de um problema muito especifico e ter uma intervenção mais curta ou mesmo mais longa, caso se trate de uma situação de cuidados paliativos, por exemplo. A capacidade financeira dos pacientes também é, muitas vezes, um factor a ter em conta. Contudo a Terapia Ocupacional é comparticipada por diversos subsistemas de saúde.

“Existem pessoas que precisam de um acompanhamento mais contínuo ou regular. Outras só precisam de conseguir fazer uma tarefa, por exemplo, tomar banho. Nesses casos, nós avaliamos a casa, vemos que equipamento de apoio deve ser colocado na habitação, explicamos à família como tem de proceder e pronto, a nossa intervenção acaba”, exemplifica a terapeuta.

Vanessa Gaio admite que no final do dia é uma profissão com alguma carga emocional, mas que, no entanto, é um trabalho extremamente recompensador. “Não há nada mais gratificante do que ver as pessoas ‘felizes”, confessa.

Uma questão de prevenção: A Terapia Ocupacional pode “evitar muitas situações de internamento, de cirurgia e cuidados continuados”
A Terapia Ocupacional também atua no sentido da prevenção. Muitas vezes, a intervenção do terapeuta ocupacional alinha-se no sentido de prevenir problemas que interferem com a capacidade das pessoas realizarem as atividades do dia-a-dia. Elisabete Roldão, professora do curso de Terapia Ocupacional na Escola Superior de Saúde do Politécnico de Leiria e presidente da Associação Portuguesa dos Terapeutas Ocupacionais (APTO) fala da importância desta dimensão na saúde dos portugueses. “Temos de mudar esta noção de que só se trata da saúde após a doença. Porque efectivamente toda a população portuguesa necessita de ter comportamentos muito mais saudáveis e, no que diz respeito a hábitos do dia-a-dia, o terapeuta ocupacional pode ter um papel preponderante”, afirma.

Elisabete Roldão dá vários exemplos de situações em que um terapeuta ocupacional pode ajudar a prevenir problemas de saúde. A correcção da postura e adaptação do local de trabalho de um trabalhador, sugerida por um terapeuta ocupacional, pode evitar que mais tarde este desenvolva lesões e doenças profissionais. A avaliação por parte de um terapeuta ocupacional sobre se a organização interior de uma habitação potencia quedas ou lesões a um idoso é outro cenário que pode evitar futuras idas ao hospital.

“Se houvesse um investimento na prevenção nós conseguíamos poupar ao SNS milhões e milhões de euros, sem dúvida. Porque iríamos evitar muitas situações de internamento, de cirurgia e cuidados continuados”, aponta.

A presidente da APTO, que trabalhou como terapeuta ocupacional durante 20 anos no Hospital Militar Principal, mais tarde Hospital das Forças Armadas, e mais cinco noutras unidades de saúde, ainda salienta que a Terapia Ocupacional é uma resposta cada vez mais iminente no futuro. “Hoje, se por um lado as gerações mais novas tem mais cuidados com a alimentação e condição física, por outro é uma população que vai estar muito tempo ao computador, numa posição estática, por exemplo, e isso vai trazer bastantes lesões. Por outro lado, vai ser uma geração que vai viver muito mais anos do que as anteriores e, portanto, vai ser confrontada com mais com demências. Perante estas circunstâncias, a Terapia Ocupacional irá ter um papel muito importante”, declara.

Onde estão os terapeutas ocupacionais?

Os terapeutas ocupacionais podem intervir em diversas áreas e contextos. Hoje em dia, os cerca de 1800 profissionais portugueses encontram-se a exercer em hospitais públicos e privados, unidades psiquiátricas, centros de saúde, centros de dia, lares, instituições de solidariedade social, clínicas de reabilitação, escolas, organizações não governamentais e até em empresas. Tendo em conta que é uma profissão recente (com cerca de 102 anos de existência no mundo e 60 em Portugal), a Terapia Ocupacional ainda não é, na maior parte das vezes, uma resposta cujos pacientes procurem por iniciativa própria. Na maioria dos casos é aconselhada através de um profissional de saúde, outro utente que já passou pelo processo da Terapia Ocupacional e obteve bons resultados, ou apresentada aos utentes já nos locais onde estes profissionais se encontram a trabalhar, como por exemplo, em centros de dia ou lares.

“No centro de dia onde trabalho acharam que fazia todo o sentido ter terapeutas ocupacionais a trabalharem lá diariamente. No entanto, nem todos os centros têm terapeutas ocupacionais, tendo em conta que não é obrigatório terem por Lei. São obrigados a ter um animador mas não um terapeuta ocupacional”, conta Vanessa Gaio.

Elisabete Roldão também refere que por diversas vezes, os terapeutas ocupacionais são confundidos com os outros profissionais de saúde, contribuindo para o desconhecimento da Terapia Ocupacional do grande público. “Na área da reabilitação, a profissão mais conhecida é a fisioterapia e uma vez que a imagem profissional do fisioterapeuta e do terapeuta ocupacional é semelhante (o tipo de farda é o mesmo, por exemplo), isso acaba por levar as pessoas a designarem todos os profissionais de reabilitação por fisioterapeutas”, assevera.

Os terapeutas ocupacionais também fazem sessões em casa dos pacientes. Estas visitas, mais conhecidas por domicílios, podem tanto ser realizadas através do SNS como de unidades de saúde privadas. Ao que o Portal de Noticias apurou, geralmente, estas sessões não devem durar mais de 45 minutos e que, no caso dos privados, cada sessão custa cerca de 35 a 40 euros. No âmbito empresarial, também poderá encontrar terapeutas ocupacionais. Elisabete Roldão dá o exemplo da conhecida empresa portuguesa Delta Cafés que tem a tempo inteiro terapeutas ocupacionais que ajudam tanto os trabalhadores como os filhos dos mesmos que se encontram na creche da empresa. “Nas creches os terapeutas ocupacionais trabalham com crianças que possam ter algum tipo de dificuldades, sejam elas a nível sensorial, perceptivo ou cognitivo, adquirido ou congénito”. No que diz respeito aos trabalhadores, os terapeutas ocupacionais fazem um acompanhamento preventivo e, caso haja alguma lesão, o profissional também atua. “Ou seja, em vez do funcionário estar a faltar ao emprego e ausentar-se para fazer tratamento numa clínica, na própria instituição, um terapeuta ocupacional recebe o paciente, este pode retornar ao seu posto de trabalho e continuar a ser acompanhado”, refere.

Ainda existem terapeutas ocupacionais que trabalham em empresas de produtos de apoio. Estes profissionais fazem a avaliação das necessidades de cada cliente. Se uma pessoa precisa de uma cadeira de rodas, os terapeutas vão averiguar que características é que essa cadeira tem de ter para dar a melhor qualidade de vida à pessoa em causa, por exemplo.

Formação e regulamentação da profissão

Para se ser terapeuta ocupacional é necessário ter o grau de licenciado na área. No curso, com a duração de quatro anos, os futuros profissionais adquirem conhecimentos técnicos sobre a ciência ocupacional, a doença e sobre saúde, no geral. Desde o primeiro ano, os alunos começam logo a realizar estágios práticos em diversas áreas, tais como, psiquiatria, pediatria, geriatria e reabilitação. Em Portugal, o curso de terapeuta ocupacional é lecionado na Escola Superior de Saúde de Alcoitão, Escola Superior de Saúde do Politécnico do Porto, Escola Superior de Saúde do Politécnico de Leiria e na Escola Superior de Saúde do Politécnico de Beja. Os terapeutas ocupacionais só podem exercer após terminarem o curso e receberem a cédula profissional emitida pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS).

“A nossa actividade está regulada por Lei há já muitos anos e integramos a carreira dos técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica”, esclarece Elisabete Roldão.

A APTO é associação profissional que representa, todos os terapeutas ocupacionais que existem em Portugal, a nível nacional, europeu e internacional. “Representamos a profissão, atendemos às reuniões com o Ministério da Educação e da Saúde, apoiamos eventos, organizamos congressos nacionais e ibéricos – em parceria com a associação congénere espanhola. No âmbito europeu, representamos Portugal no Conselho Europeu de Terapeutas Ocupacionais e a nível mundial, na Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais”, resume a presidente da associação que entrou em funções em 2013.

No que concerne a sindicalização, os terapeutas ocupacionais podem se inscrever nos “sindicatos que quiserem”, sendo que o SINDITE – Sindicato dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica é o que tem o maior número de terapeutas ocupacionais inscritos. No entanto, estes profissionais, tal como todos os que pertencem às tecnologias da saúde, ainda não têm uma ordem profissional. Apesar de haver interesse por grande parte dos terapeutas ocupacionais, uma ordem ainda parece uma realidade longínqua. “É um processo moroso, muito burocrático e dispendioso. Também temos consciência que ainda não temos a dimensão que nos poderia dar segurança de que realmente conseguirmos alcançar a constituição de ordem. De qualquer maneira, assim que começarmos a ver vontade política de dar reconhecimento a estas profissões, aí avançaremos também com o nosso processo de pedido de uma ordem profissional”, afirma.
É de recordar que, tal como os médicos, e outros profissionais de saúde os terapeutas ocupacionais estão obrigados ao sigilo profissional.

Apesar de haver registos históricos de que a reabilitação através da ocupação já era uma técnica utilizada há milhares de anos antes de Cristo na Grécia Clássica e na China, a Terapia Ocupacional começou a estruturar-se como profissão no mundo moderno em 1906, em Chicago, nos Estados Unidos da América. A criação dos primeiros cursos focava-se em formar pessoas para trabalharem em hospitais, com uma função específica: utilizar a ocupação para ajudar os doentes. Em 1910, a Terapia Ocupacional foi definida como a “ciência da cura pela ocupação”. Consolidando-se formalmente enquanto profissão no séc. XX, a Terapia Ocupacional foi exponencialmente desenvolvida durante a Primeira e Segunda Guerra Mundial, tendo sido um valioso contributo na reabilitação de inúmeros sobreviventes.

 

Artigo originalmente publicado a junho de 2019

Texto: Mafalda Tello Silva

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