Em nome de todos nós – por Sofia Afonso Ferreira, escritora

Estamos perante uma das mais doentias facetas da sociedade, e, por que não o dizer, das mais covardes, tanto pelo acto em si como o silêncio que reveste a questão. Uma sociedade que desculpa um acto covarde, é uma sociedade também ela covarde.

Em nome de todos nós – por Sofia Afonso Ferreira, escritora

A jornalista Carla Maia de Almeida visitou casas de abrigo para vítimas de violência doméstica e recolheu vários testemunhos. Em Portugal, todos os anos morrem três dezenas de mulheres assassinadas, segundo os números oficiais. Quinhentas mulheres na última década e meia. A reportagem publicada no livro “Em nome da filha” publicado lançado este mês pela Fundação Francisco Manuel dos Santos é uma viagem ao inferno.

Poderíamos falar de muitas coisas. Da coragem que é necessária à vitima para apresentar queixa, por exemplo. O calvário que se segue. A dificuldade em provar um crime a maior parte das vezes cometido na privacidade e sem testemunhas. A incongruência de serem as vítimas a abandonar o lar, muitas vezes abandonando o património e bens de uma vida para usufruto do agressor. A desesperante demora na resposta por parte da Justiça e autoridades competentes. Os tribunais e juízes inadequados para compreender a dimensão e tragédia da questão.

Estamos perante uma das mais doentias facetas da sociedade, e, por que não o dizer, das mais covardes, tanto pelo acto em si como o silêncio que reveste a questão. Uma sociedade que desculpa um acto covarde, é uma sociedade também ela covarde.

O livro convida-nos a conhecer cada uma das entrevistadas e as histórias violentas que as conduziu a uma situação limite. É difícil escrever sobre um tão trágico e devastador problema na sociedade sem cair no prosa sentimental ou num lirismo desajustado, no entanto Carla Maia de Almeida atinge o objectivo em pleno na forma como seleciona e apresenta certas passagens dos testemunhos e nos conduz pela sua leitura. Um dos testemunhos mais fortes, e ao qual o título do livro faz menção, é o de uma filha que assistiu ao pai a assassinar a mãe há duas décadas. Algo que raramente recordamos, os que ficam e o que pensam e sentem depois da tragédia.

No lançamento do livro, escritora e convidados foram unânimes – muita coisa já foi feita em termos de legislação e sensibilização, mas muito ainda está por fazer, e, identificado o problema, como ultrapassar o mesmo? Pela educação, pela informação, pela mudança de consciência das gerações vindouras. Não poderia concordar mais. Não eduquem as raparigas como futuras mulheres mas como pessoas de plenos direitos independentemente do seu sexo. Não ofereçam o peixe, mas a cana, o anzol e o isco. Menos batons, mais livros. Salários iguais e acesso pleno a cargos de chefia. Menos ‘it girls’, mais ‘power girls’. E talvez o mundo mude para melhor.

“A violência, doméstica ou não, nunca vai acabar, mas não podemos remeter-nos ao silêncio dos não-inocentes. Este é o tempo que nos foi dado a viver. Temos de estar à altura dele.”

"Em nome da filha – Retratos de Violência na Intimidade", de Carla Maia de Almeida, Fundação Francisco Manuel dos Santos
“Em nome da filha – Retratos de Violência na Intimidade”, de Carla Maia de Almeida, Fundação Francisco Manuel dos Santos

 

Sofia Afonso Ferreira

Sofia Afonso Ferreira, escritora ([email protected]) | Foto Carlos Ramos

 

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