“Victor ou as crianças no poder”, um olhar sobre alienação no Teatro da Politécnica

A peça “Victor ou as crianças no poder”, do dramaturgo francês Roger Vitrac, contrapõe personagens conscientes da realidade e do seu lugar, a outras alienadas por convenções, num aparente conflito entre lucidez da infância e futilidade da idade adulta.

Coproduzida pelos Artistas Unidos e Os Possessos, a peça estreia-se em 08 de fevereiro, no Teatro da Politécnica, em Lisboa, e assinala também os dez anos da companhia cofundada por João Pedro Mamede, que a encena.

“Victor ou as crianças no poder” é a mais conhecida obra de Roger Vitrac (1899-1952), nome do movimento Dada e do Surrealismo francês, cofundador do Teatro Alfred-Jarry com Antonin Artaud, que dirigiu a peça na sua estreia, em 1928.

Drama em três atos, “Victor ou as crianças no poder” oscila entre lirismo, ironia e subversão da ordem burguesa, do ponto de vista de uma criança que lança um olhar mordaz sobre o mundo dos adultos, a sua ordem e alienação, reclamando a sua liberdade e pondo em causa convenções sociais e familiares.

A ação centra-se em duas famílias abastadas: os Paumelle, pais de Victor, e os Magneau, pais de Esther. Tudo decorre em Paris, num só serão, no tempo de um jantar, entre as 20:00 e a meia-noite de 12 de setembro de 1909, Dia de S. Leôncio, quando Victor faz nove anos e diz logo ao que vai: “Não espero nem mais um ano para ser adulto. Estou decidido a ser alguém e é já!”

A peça tem início na sala de jantar da família Paumelle. No começo, Victor quebra um jarrão de porcelana. O ato permite a normalização da mentira, da dissimulação, que atravessa o espectáculo, alastra a toda a casa e contamina as personagens até ao delírio.

Num texto que “se calhar, tem muito pouco” a ver com infância, como disse João Pedro Mamede, esta acaba por ser usada como “pretexto ou ponto de partida do autor para perspetivar ou mesmo julgar” o mundo em volta.

Victor e Esther, a sua aliada, são crianças “sobredotadas, sexuadas”, “não são parvas, sabem o que se passa” e tentam “reclamar para si um espaço que a início é só dos adultos”, frisou o encenador à Lusa, no final de um ensaio.

Sem qualquer inocência, Victor e Esther vivem “numa espécie de frequência mais real por comparação à fantasia dos outros [dos adultos]”.

Numa obra difícil “de encaixotar”, as ações acabam por imiscuir-se umas nas outras, pautando-se o quotidiano dos Paumelle e dos Magneau por “uma espécie de ampliação surrealista”, que “eleva a peça a um absurdo de gente meio obcecada e fútil”, sem que nenhuma personagem se ajude a si mesma nem aos outros.

Segundo João Pedro Mamede, optaram assim por levá-la a palco “como drama”.

“O mais possível, o mais melancólico possível para também eventualmente ter mais piada”, e para que “as coisas tenham o recorte necessário relativo a esta contemporaneidade, ao momento em que estamos”, embora “não estejamos antes nem depois de guerra nenhuma”, mas “no meio de várias”, frisou, acrescentando: “Não há paz nenhuma.”

Portadoras de memória histórica “meio adulterada pelas suas fantasias”, as personagens sofrem de “uma ignorância e alienação grandes”, traçando um paralelismo com a atualidade em que, “apesar de haver muita guerra, também há muita festa.”

Traduzida por Jorge Silva Melo e editada em 2020 na coleção Livrinhos de Teatro, a peça chega agora a palco. Na altura, o fundador dos Artistas Unidos disse a Mamede que era uma boa peça para Os Possessos.

Com esta “meia transferência do Jorge”, a companhia leu o texto, gostou muito, e como havia vontade de fazer uma obra de repertório nos 10 anos do grupo, candidatou-a aos subsídios bienais. E aconteceu.

João Pedro Mamede não encenava “há algum tempo”, por isso está a fazê-lo “com todo o gosto”, num encontro “muito feliz e muito fixe”, com “uma série de malta” que já tinha trabalhado com o grupo, “mais umas novas aquisições”.

Os Possessos foram fundados por Catarina Rôlo Salgueiro, João Pedro Mamede e Nuno Gonçalo Rodrigues, em janeiro de 2014. E vão editar em breve quatro peças do seu repertório, nos Livrinhos do Teatro.

Roger Vitrac morreu em Paris, aos 53 anos. Poeta e dramaturgo, escreveu em 1922 a sua primeira peça, “La Fenêtre Vorace”, entretanto perdida.

Conheceu o dadaísmo, juntando-se depois aos surrealistas de André Breton, que o expulsou do movimento em 1925-1926. O mesmo aconteceu a Artaud com quem fundou o Teatro Alfred Jarry, em homenagem ao autor de “Rei Ubu”, estrutura ativa até 1930. Foi aqui que estreou “Victor ou as crianças no poder”.

O êxito, porém, chegou tarde. Só em 1962, depois de o dramaturgo e encenador Jean Anouilh ter dirigido a peça no Théâtre de l’Ambigu, foi reconhecida a sua importância como precursora do teatro do absurdo e o seu lugar no repertório.

Em Portugal, foi posta em cena em 1970, pelo Teatro Estúdio de Lisboa, de Luzia Maria Martins, e em 1987, pela Comuna, de João Mota.

“Victor ou as crianças no poder”, pel’Os Possessos, conta com os atores Ana Amaral, André Pardal, António Simão, Catarina Rôlo Salgueiro, Inês Reis, Isabel Costa, Henrique Gil, Leonardo Garibaldi, Mia Tomé e Rafael Gomes. Na assistência de encenação está Leonor Buescu.

A cenografia é de Bruno Bogarim, com assistência de Joana Oliveira, os figurinos de Sara Coimbra Loureiro, a luz de Diana Santos e o som de Tiago Raposinho.

“Victor ou as crianças no poder” fica no Teatro da Politécnica até 24 de fevereiro, com récitas de terça a quinta-feira, às 19:00, à sexta, às 21:00, e ao sábado, às 16:00 e às 21:00.

CP // MAG

By Impala News / Lusa

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