Zelensky: o comediante que desafiou a máquina de guerra de Putin

Como o comediante Volodymyr Zelensky se transformou no desafiador e herói da resistência da Ucrânia à Rússia na luta desigual contra o poderio da máquina de guerra de Putin.

No avanço para a batalha na Ucrânia, as forças russas marcaram os equipamentos de guerra com uma única letra com o significado do seu objetivo. Houve diferentes interpretações da letra “Z” – usada em veículos militares russos – e uma é a de que representa a primeira letra de “Za pobedy“, que em russo significa “Pela vitória”. Mas, para outros, que viram o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky descrever-se como o “alvo número um” da Rússia, o gigante “Z” parece confirmar que derrubar Zelensky está, antes de tudo, na mente de Vladimir Putin.

Fora da Ucrânia, Zelensky tornou-se a figura de proa global e o foco da resistência ucraniana, algo sublinhado pela recente decisão do parlamento britânico de pedir ao presidente ucraniano que se dirigisse a parlamentares na Câmara dos Comuns por videoconferência. O caminho de Zelensky até ao poder não poderia ser mais diferente do que o homem que o persegue. Putin subiu na hierarquia da KGB para construir a sua base de poder sob a liderança caótica do ex-presidente russo Boris Yeltsin. Enquanto isso, o presidente ucraniano, de 44 anos, casado e pai de duas crianças, agora abraçado pelo mundo e em casa como heroico líder de guerra, foi antes comediante e ator de cinema com imenso sucesso – tendo elevado a estrela o papel do homem comum.

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Filho de académicos e neto de herói de guerra

Zelensky: o comediante que desafiou a máquina de guerra de Putin
Presidente ucraniano é filho de um matemático e professor de Ciência de Computação e de uma engenheira. O avô e três tios-avós lutaram no exército soviético contra os nazis. Apenas o avô sobreviveu

Zelensky não tinha experiência política quando concorreu à presidência em 2019. Nascido em 1978, em Kryvyi Rih, importante cidade de mineração de ferro (e altamente poluída) no sudeste da Ucrânia, é filho de um matemático e professor de Ciência de Computação e de uma engenheira. O avô e três tios-avós lutaram no exército soviético contra os nazis. Apenas o avô sobreviveu. O bisavô e outros familiares foram assassinados durante o Holocausto.

No ensino secundário, Zelensky e outros amigos entraram no Klub Vesyólykh i Nakhódchivykh (KVN), concurso de comédia e programa de televisão para jovens traduzido livremente como o “Clube de Pessoas Engraçadas e Inventivas”, que foi imensamente popular desde o seu lançamento inicial, na década de 1960. Desde que foi reposto, em meados da década de 1980, equipas formadas por universitários competem semanalmente no programa de altíssimas audiências, que é uma espécie de mistura entre o Saturday Night Live e o Portugal Got Talent e uma autêntica relíquia da cultura soviética que levou os telespetadores à histeria desde o pós-guerra e o fim da União soviética.

Zelinsky, o comediante eleito presidente

Enquanto estudava Direito, Zelensky formou o grupo de comédia Kvartal 95 com alguns amigos que faziam espetáculos pelo país. Em 2003, os Kvartal 95 começaram a produzir programas para a televisão ucraniana e, em 2005, Zelensky era cabeça de cartaz no cinema ucraniano. Em 2006, ganhou a versão ucraniana de Dança com as Estrelas, consolidando a sua capacidade de conquistar o favor do público. O seu papel mais notável, de longe, foi na série de televisão de 2015-2019 Servant of the People – após o qual decidiu fundar um partido político.

A vida imita a arte: Zelensky como Vasyl Petrovych Goloborodko, um professor de história do ensino médio que é inesperadamente eleito presidente da Ucrânia.
A vida imita a arte. Zelensky como Vasyl Petrovych Goloborodko, professor de História do ensino secundário inesperadamente eleito Presidente da Ucrânia

Na sitcom, Zelensky interpretou um professor de História do ensino secundário, uma personagem discreta cujo discurso pleno de palavrões sobre corrupção é gravado, sem que ele saiba. O vídeo torna-se viral e catapulta a personagem para a presidência. Nas eleições presidenciais da Ucrânia, em abril de 2019, depois de uma curta campanha desprovida de conversa política, além das promessas de combater a corrupção e de trazer a paz a Donbas, Zelensky destituiu o presidente em exercício Petro Poroshenko.

Ganhou 73% dos votos – feito notável e sem precedentes na política ucraniana, uma vez que, como descreve Marc Berenson (académico no Instituto King’s Russia Institute e em King’s College de Londres) no livro Impostos e Confiança, os ucranianos têm uma longa história de profunda desconfiança em relação a novos líderes. Depois de o seu partido ter alcançado uma vitória parlamentar alguns meses depois, Zelensky detinha mais poder do que qualquer outro político nos 30 anos de História da Ucrânia.

Como presidente, Zelensky levou vários membros do Kvartal 95 para o governo. Promoveu o serviço governamental online para todos e aperfeiçoou a comunicação direta com o público através das redes sociais. Sobre a guerra de Donbas, inicialmente acreditava que só precisava de negociar diretamente com Putin. O que, como se sabe, acabou mal… Um acordo preliminar anunciado por Zelensky em outubro de 2019 – posteriormente retirado – recebeu críticas significativas tanto na Ucrânia como no exterior por implicar a retirada de tropas russas e eleições nas áreas ocupadas pelos separatistas povoadas com poucos eleitores pró-ucranianos.

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O fim da lua de mel política

Na primavera de 2020, Zelensky retirou do governo muitos reformadores pró-ocidentais, incluindo o primeiro-ministro e o chefe do novo Gabinete Nacional Anticorrupção. Substituí-los por leais, mas menos experientes, acabou com uma enorme condenação. Em simultâneo, Zelensky começou a apoiar as acusações levantadas contra Poroshenko, indiciado em janeiro de 2022 por traição relacionada com um acordo de comércio de carvão no Donbas ocupado.

Foi criticado com alegações de que o seu apoio às acusações estava a manchar a imagem internacional da Ucrânia num momento de crise, enquanto os soldados de Putin se aquartelavam na fronteira. Em 2020, os índices de popularidade de Zelensky caíram para 30 e poucos porcento, embora continuasse a ser o político mais popular do país.

A corrupção tem sido um problema de longa data para a Ucrânia, com os esforços de Zelensky para combatê-la amplamente vistos como algo contraditórios. Quando fez campanha para a presidência em 2019, era frequentemente ligado a Ihor Kolomoisky, oligarca ucraniano dono do canal que transmitiu a sua série de sucesso e visto como acérrimo apoiante de Zelensky. Apesar da alegada ligação, Zelensky recusou-se a permitir a reprivatização do PrivatBank, outrora propriedade de Kolomoisky. Em 2021, aprovou com sucesso uma lei para reprimir a comunicação social propriedade de oligarcas. Esta lei entraria em vigor no final da primavera.

Antese, Zelensky também retirou a imunidade aos membros do parlamento, a juízes e ao próprio presidente e implementou uma lei sobre enriquecimento ilícito. Em 2020, a presidência entrou em conflito com o tribunal constitucional da Ucrânia, que descartou um sistema de declaração de bens para políticos e juízes – exigido por acordos de assistência internacional – para destapar a corrupção e privou a Agência Nacional de Prevenção da Corrupção de muita da sua autoridade. Enquanto isso, um ano depois, entre novas descobertas sobre as elites políticas em todo o mundo, os Pandora Papers revelaram que Zelensky detinha ativos offshore – embora ele tivesse negado sempre qualquer tipo de lavagem de dinheiro.

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Enfrentar Putin

A oposição de Zelensky à Rússia vinha em crescendo muito antes da invasão se efetivar. Em fevereiro do ano passado, posicionou-se contra Putin ao fechar os canais de televisão controlados por Vikor Medvedchuk, oligarca ucraniano, que promoveria uma narrativa pró-Kremlin sobre Donbas. Em abril, com Putin a aumentar as suas forças armadas ao longo das fronteiras da Ucrânia, Zelensky pediu à NATO que a Ucrânia fosse admitida com caráter de urgência. Em novembro, acusou outro oligarca, Rinat Akhmetov, de colaborar com a Rússia num golpe-de-estado.

Fora da Ucrânia, Zelensky pode ser mais lembrado pelo telefonema de 2019 para o então presidente dos EUA Donald Trump, que pressionou sem sucesso Zelensky a investigar o filho do rival de campanha Joe Biden, Hunter. O caso tornou-se o motivo da primeira tentativa de impeachment de Trump.

Como Zelensky se recusa a deixar a capital – Kiev – e continua a reunir o país na sua luta, os escândalos em torno do “herói ucraniano” ficarão para a História como nota-de-rodapé muito inferior em tamanho e importância menor do que a letra Z maiúscula.

Luís Martins; com imagens do Instagram

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