Da letra Z à Q: quando as letras se tornam símbolos políticos

A letra Z surgiu nos tanques russos e faz parte da guerra pela opinião pública que corre paralela à guerra real na Ucrânia. Afinal, qual a importância dos símbolos num conflito armado, como o atual?

Da letra Z à Q: quando as letras se tornam símbolos políticos

Pintada na lateral dos tanques e estampada no equipamento do ginasta russo Ivan Kuliak, a letra Z passou a representar o apoio à invasão da Ucrânia pela Rússia. O Z foi inclusivamente incorporado à grafia de nomes de lugares como КуZбасс, no centro-sul russo. Em alguns países, como a República Checa, por exemplo, há mesmo discussões sobre se a exibição da letra deve ser uma ofensa criminal. O surgimento ocorre depois do de outra letra do alfabeto latino – a letra Q – ter-se tornado parte da política de extrema-direita nos EUA (e no exterior) fruto da teoria da conspiração QAnon.

Da letra Z à Q: quando as letras se tornam símbolos políticos
“O uso de símbolos é parte fundamental de qualquer conflito político – parte da estratégia de propaganda que tenta moldar a narrativa pública”, explica Philip Seargent, professor de Linguística Aplicada

“O uso de símbolos é parte fundamental de qualquer conflito político – parte da estratégia de propaganda que tenta moldar a narrativa pública“, explica Philip Seargent, professor de Linguística Aplicada da Universidade Aberta, no Reino Unido. Mas “o mais interessante é como estes símbolos eficazes surgem, e que alguns deles se tornam tão poderosos que acabam banidos como forma de discurso de ódio“.

A guerra pela opinião pública que corre lado a lado com a guerra real na Ucrânia deu origem a uma série de símbolos que representam o apoio a um lado ou a outro. O Twitter está cheio de pessoas que adicionaram o emoji da bandeira ucraniana ao seu nome. As palavras desafiadoras dos defensores ucranianos da Ilha da Cobra – “Navio de guerra russo, vai-te foder” – tornaram-se num poderoso slogan e até mesmo inspiração para um selo postal oficial ucraniano.

Por outro lado, o símbolo mais notável foi o simples Z. Existem muitas teorias sobre por que razões esta letra se tornou num símbolo pró-guerra e quais podem ser as suas origens. “É porque representa a palavra russa para oeste (zapad), a direção em que os tanques de Putin estão a dirigir-se? Ou é uma abreviatura de Za pobedu – ‘para a vitória’? Há também a estranheza de que o alfabeto cirílico não tenha um sinal parecido com Z, em que o som ‘zê’ é escrito como З.”

Dar significado às letras

As circunstâncias da origem de um símbolo são apenas uma “pequena parte da sua história”. É a “forma como os símbolos passam a ecoar na sociedade, e como as pessoas lhes impõem significados, que transforma signos arbitrários em poderosos instrumentos de propaganda“. Símbolos políticos podem assumir “praticamente qualquer forma que possamos imaginar”. Em 2013, os pinguins tornaram-se no “símbolo dos manifestantes antigovernamentais em Istambul”. Quando os confrontos violentos entre a polícia e os manifestantes começaram, “todos os canais de televisão nacionais optaram por não cobri-los”. A CNN Turquia, em vez disso, “publicou um documentário sobre pinguins – que os manifestantes adotaram como emblema da sua luta e para ironizar sobre a decisão da estação de televisão”.

O uso de letras do alfabeto como símbolos políticos é vasto pela simples razão de que “letras individuais não têm por norma ter qualquer significado próprio intrínseco”. Devem apenas representar “sons que, quando combinados, produzem palavras que só então ganham significado”. Quando o alfabeto fonético da NATO (Alfa, Bravo, Charlie e assim por diante) estava a ser desenvolvido, “um dos critérios para as palavras usadas para representar letras era o de que deveriam ‘estar livres de qualquer associação com significados censuráveis‘”, lembra Seargent. As letras “devem ser politicamente e culturalmente neutros, da mesma forma que as próprias letras são”.

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A neutralidade das letras alfabéticas também esteve por trás da decisão da Organização Mundial da Saúde de usar letras gregas para designar novas variantes da covid-19. Antes disso, as variantes eram nomeadas de acordo com o local de origem, o que poderia levar a estigmatizar locais ou países associados para sempre ao vírus. Mesmo assim, certas letras “tinham que ser omitidas caso levassem acidentalmente a associações indesejadas”. A letra grega Xi, por exemplo, “foi omitida por assemelhar-se ao sobrenome do presidente da China”, Xi Jinping.

O que isto revela é que “a linguagem é sempre potencialmente política, precisamente porque está no centro de como os humanos interagem – e a própria interação humana é sempre, em algum momento, política”. Palavras e símbolos têm “significado denotativo [a definição literal, do dicionário], mas também carregam traços históricos do seu uso, com conotações para as pessoas”.

Por isso, “não surpreende que os dois exemplos recentes de letras alfabéticas como símbolos políticos tenham adotado as duas menos usadas de todas as letras, no seu léxico” – Z e Q. “A letra Z tem sido tradicionalmente vista como supérflua na Língua inglesa – tanto que Shakespeare fez dela a base de um insulto, em Rei Lear: ‘Thou whoreson zed’ – És letra desnecessária”. A letra Q “tem associações com palavras como consulta e pergunta. Portanto, nem sequer se tratava de uma folha em branco antes da sua utilização”.

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Em última análise, porém, é a forma como os signos são realmente usados ​​que os transforma em símbolos. “É mais uma questão de por quem eles são usados e com que propósito”. “O seu significado incorpora-se rapidamente à cultura quando o seu uso começa a espalhar-se pela sociedade e é cada vez mais adotado, destacado e debatido pelos Media – até que, em alguns casos, seja banido. A seu tempo, torna-se parte do vocabulário quotidiano que usamos para dar sentido ao mundo.”

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