A invasão russa na Ucrânia comparada com a norte-americana no Iraque

A invasão do Iraque em 2004 “não parece tão diferente do que o que a Rússia está a fazer agora na Ucrânia”, considera Hugh Gusterson, professor de Antropologia e Políticas Públicas na Universidade da Colúmbia Britânica.

A invasão russa na Ucrânia comparada com a norte-americana no Iraque

Professor de Antropologia e Políticas Públicas na Universidade da Colúmbia Britânica, Hugh Gusterson diz-se o crítico “mais severo de Putin”. Gusterson considera aliás que “a Ucrânia não tem um aliado mais forte” do ele. Como tantos outros, fica “chocado ao ver a cínica manipulação da verdade pelo presidente russo na sua invasão de um vizinho mais fraco”, mas é-lhe “difícil” juntar-se “à pilha retórica” que vê “nas notícias e nas páginas de opinião por causa de uma hipocrisia subjacente” – “muito do que Putin está a fazer de errado é baseado em, ou possibilitado por, ações dos Estados Unidos da América” (EUA).

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Os Estados Unidos condenam Putin por renegar promessas anteriores – “especialmente no momento em que a Ucrânia desistiu das suas armas nucleares no início dos anos 1990” – de respeitar a integridade territorial da Ucrânia. “Mas, como mostrou Joshua Shifrinson, da Universidade de Boston, Gorbachev concordou em 1990 em permitir que uma Alemanha reunificada fizesse parte da NATO porque o secretário de Estado James Baker prometeu que a NATO se expandiria nem mais um centímetro”, lembra Hugh Gusterson.

Para o especialista, a pergunta que se impõe é simples – “Por que é que a NATO incluiu a Polónia, a República Checa, a Hungria, os Estados Bálticos e outros?” – e a resposta é óbvia. “Porque os Estados Unidos decidiram renegar os compromissos em face da vantagem estratégica em fazê-lo, mas em parte também, supostamente, porque Bill Clinton viu vantagem eleitoral neste curso de ação nos estados do Centro-Oeste com eleitores que se identificavam com a sua herança do leste europeu.”

“Os chamados ‘realistas’ argumentarão que os Estados Unidos só fizeram o que as grandes potências devem fazer”, considera Gusterson. “Como Tucídides argumentou há 2.500 anos, quando grandes potências – os principais predadores do sistema global – veem uma fraqueza ou um vazio de poder, expandem-se”, constata, embora discorde.

“Discordo deste ponto de vista. Além do fato de que nosso mundo interligado de armas nucleares, acordos comerciais, corporações multinacionais e organizações da ONU ser muito diferente do mundo de Tucídides, as grandes potências dependem da previsibilidade das normas internacionais, e parte da sua grandeza está em serem vistas como cumpridoras das suas promessas.”

A segunda crítica feita por porta-vozes e especialistas é que Putin violou um dos elementos mais fundamentais da ordem internacional – “a santidade das fronteiras nacionais” – ao invadir a Ucrânia. “Claro, isso é verdade: os Estados têm o direito de se sentirem seguros dentro das suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, de regular quem entra e quem sai e o que acontece dentro dessas fronteiras. Mas as críticas dos EUA à transgressão das fronteiras da Ucrânia por Putin soariam menos cínicas se não viessem das pessoas que alegam que os Estados Unidos têm carta branca para violar as fronteiras de outros países.”

Gusterson refere-se “a todos aqueles funcionários, académicos e especialistas que, durante anos, se comportaram como se os Estados Unidos tivessem o direito divino de transgredir as fronteiras de países como Somália, Iémen e Paquistão para assassinar pessoas no terreno com mísseis disparados de drones Predator e Reaper”. Isto também “contrariava o direito internacional”. Num momento do governo Obama, “houve um ataque de um drone dos EUA no Paquistão a cada três dias, em média”. O vice-presidente dos EUA naquela altura, “que não tinha nada a dizer sobre esses ataques fora da legalidade a nações soberanas, era nada menos do que Biden”, o atual presidente norte-americano.

Gusterson não diferencia o ataque russo à Ucrânia do ataque norte-americano ao Iraque

quando olho para Putin a atacar a Ucrânia, não vejo um simples ato de maldade, mas um ato de maldade fundamentado e decorrente de atos anteriores dos EUA e dos seus aliados
“Quando olho para Putin a atacar a Ucrânia, não vejo um simples ato de maldade, mas um ato de maldade fundamentado e decorrente de atos anteriores dos EUA e dos seus aliados”, justifica Hugh Gusterson, professor de Antropologia e Políticas Públicas na Universidade da Colúmbia Britânica

Terceiro, “nos últimos dias, Putin foi amplamente condenado por uma campanha de propaganda enganosa destinada a justificar a invasão: falsas alegações que a Ucrânia procura adquirir armas nucleares, planeia encenar falsas atrocidades e provocações e assim por diante”. “Mas a Rússia não é o único país a empreender tal campanha nos últimos anos”, assinala Hugh Gusterson. “Todos já esquecemos o discurso de Colin Powell na ONU sobre as armas iraquianas de destruição em massa que afinal não existiam? Aquele discurso justificou uma invasão do Iraque que, de acordo com o Projeto Custos da Guerra da Brown University, matou pelo menos 180 mil civis iraquianos.”

“Por isso, quando olho para Putin a atacar a Ucrânia, não vejo um simples ato de maldade, mas, antes, um ato de maldade fundamentado e decorrente de atos anteriores dos EUA e dos seus aliados, que ajudaram a tornar possível um mundo em que tal ato de agressão pelo líder de uma das três maiores potências predadoras do mundo é, de fato, pré-normalizado”, acusa.

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O mundo “deveria, claro, condenar a invasão russa”, concorda Gusterson. E “deveria haver sanções e protestos”. “Mas os norte-americanos também devem notar que este não é um caso de excepcionalismo russo tanto quanto eles gostariam”. A opinião pública norte-americana “pode ter aprovado a invasão do Iraque em 2004”, mas, para muitos outros países do mundo, “essa invasão não é tão diferente do que a Rússia está agora a fazer na Ucrânia”. O caminho a seguir exige que as potências líderes sejam “mais autoconscientes sobre as formas pelas quais as suas próprias ações – que eles veem como licenciadas por circunstâncias extraordinárias – podem justificar que outros persigam as suas próprias ações excepcionalistas”, alerta Hugh Gusterson, professor de Antropologia e Políticas Públicas na Universidade da Colúmbia Britânica.

Luís Martins

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