Conflitualidade pela habitação pode continuar a crescer

A conflitualidade patente nas manifestações pela habitação pode continuar a crescer, porque há cada vez mais pessoas que não conseguem ter sequer “o sentimento de segurança” que uma casa inspira, advertiu, em entrevista à Lusa, o arquiteto Gonçalo Byrne.

Conflitualidade pela habitação pode continuar a crescer

“As manifestações são um sintoma muito óbvio de que a habitação é uma crise não só grave, que está a atingir a classe média, mas que está a acelerar, ou seja, as necessidades de habitação estão a tornar-se cada vez mais óbvias”, afirmou Gonçalo Byrne, ao comentar o protesto que no sábado levou às ruas milhares de pessoas em várias cidades do país.

“As manifestações que tiveram algumas expressões de maior conflitualidade, não digo violência, esse fenómeno pode continuar a crescer ainda, infelizmente, porque as pessoas, de facto, estão a viver mal e isso gera relações de conflitualidade, claramente”, afirmou o arquiteto, que na próxima semana passará o testemunho como presidente da Ordem dos Arquitetos (OA) à direção eleita em 21 de setembro, liderada por Avelino Oliveira.

Um dos últimos atos públicos do mandato desempenhado por Byrne foi precisamente uma tomada de posição, em conjunto com a Ordem dos Engenheiros, para exigir que o problema da habitação seja encarado como “um desígnio nacional”.

Para Gonçalo Byrne, os protestos, marcados por alguns distúrbios, demonstram “a carga emocional” gerada por uma situação que se anunciava “há bastante tempo”.

A oferta de habitação, sublinhou, não cobre setores que estão sujeitos à lei do mercado da oferta e da procura, num país com “baixíssimos níveis salariais”, que atravessou várias crises recentes e onde existe “muita precariedade, em termos de rendimentos familiares”.

“Não conseguem ter uma habitação em que vão gastar mais de 50%, 60% – 70% do rendimento mensal”, quando a relação de esforço deveria ser, no máximo, um quinto do rendimento, explicou: “Uma família que recebe 1.500 euros mensais e já estou a falar de marido e mulher — os níveis salariais são muito baixos — devia gastar, no máximo de renda, 300 euros por uma casa, não é por um quarto. E isso cada vez existe menos, então cidades como Lisboa, Porto e as principais cidades do país, o preço da habitação, incluindo do arrendamento, continua a subir”.

Gonçalo Byrne lamentou que a discussão do programa “Mais Habitação”, aprovado pelo Governo, se tenha radicalizado em dois eixos, entre investimento público e privado. “Ainda por cima, num país onde não há uma cultura de investimento público que faça parte da solução, como existe no centro da Europa e já sedimentada há vários anos. Em Portugal, infelizmente, essa cultura existe, mas é pouco significativa e, portanto, esse encrespar do diálogo absorveu muita da discussão sobre as medidas da habitação”, disse.

Por outro lado, observou, um decreto não resolve a situação “de um dia para outro”, uma vez que no mundo da construção “não há respostas imediatas”.

“Os prazos andam na média de três a quatro anos. Já há três anos que alertamos a Assembleia da República para este problema, para este desfasamento que existe entre o mundo do decreto, a temporalidade da lei e o efeito de uma lei que vai regular um setor da construção em que, com a hiper legislação que este país gerou ao longo de vários anos, criou uma situação de litigância muito fácil, que alonga mais estes prazos mínimos”, acrescentou, destacando que na prática, os prazos facilmente derrapam, com o atual enquadramento jurídico.

Gonçalo Byrne admitiu o recurso a mecanismos de exceção para resolver o problema da habitação, mas manifestou receio de que a urgência ponha em causa a qualidade da edificação.

“Essa urgência é feita através do desencadear de um concurso que parte de um documento que é um estudo prévio simplificado. É uma fase de uma obra, ou de uma possível obra, extremamente embrionária. Definir qualidade, em termos de custos e de especificações, com um estudo prévio simplificado não é possível. Ou melhor, é possível com tolerâncias na ordem dos 30%, ou mais, de risco”, indicou.

O arquiteto recordou que a questão é tão mais importante num momento em que a construção deve ser sustentável em termos ambientais, por forma a responder aos “objetivos extremamente ambiciosos” estabelecidos no âmbito do combate à crise climática, no sentido de aumentar o ciclo de vida dos edifícios.

Questionado sobre o reaproveitamento de edifícios do Estado ou património devoluto para habitação, respondeu que o parque devoluto do país é “três vezes superior às necessidades mais prementes de habitação”.

De acordo com Gonçalo Byrne, o Estado já tentou começar a resolver este problema há cinco anos com um programa que nunca foi para a frente.

“E continua a ter uma grande incapacidade de responder a partir da disponibilidade construtiva que tem de ser reabilitada do parque público. Remete praticamente tudo para o parque de habitação privado”, constatou, recordando que há edifícios do Estado em que não há sequer provas cadastrais sobre a propriedade. “Não há escrituras, porque são coisas muito antigas”.

Também na reabilitação os prazos são demorados, apesar das tentativas de simplificação. “Pela primeira vez, há uma disponibilidade para tentar simplificar esses processos (através de uma Plataforma Única do Licenciamento), mas a simplificação não quer dizer desresponsabilização e a resposta imediata do Governo é uma resposta que, inclusivamente, a Associação de Municípios criticou fortemente, porque é uma porta aberta para uma desresponsabilização muito grande”.

Gonçalo Byrne apoia a plataforma única, em alternativa à “parafernália de plataformas” existente, mas expressou preocupação com a responsabilidade que pode ser imputada a um arquiteto.

“O senhor primeiro-ministro ainda agora veio dizer que não se justifica tanto controlo prévio, tantas normas e leis, porque isso, além do mais, são limitações à criatividade dos arquitetos. Acho isso extraordinário, vir reconhecer isto quando se tiveram tantos anos de governos a criar mais normas e algumas ainda bem, porque têm a ver com questões de segurança (antissísmica, térmica), mas como é que, num passe de mágica, de repente, se diz que a criatividade dos arquitetos não deve ser limitada por estas normas”, questionou.

Byrne teme que os arquitetos possam vir a assinar “termos de responsabilidade suicidas, perante um mundo de 2.200 diplomas” que continuam visíveis. “Continuam a assinar documentos na ausência de um Código de Edificação, que é uma pretensão que já existe há 60 anos neste país e não se fez nada para avançar. Agora sim, está-se a começar a falar nisso, como da plataforma”, referiu.

Segundo Gonçalo Byrne, os arquitetos estão envolvidos na plataforma, mas relativamente ao Código de Edificação, ainda não foram ouvidos, apesar da disponibilidade manifestada em várias ocasiões.

“Não sabemos o que vai acontecer, sabemos que há iniciativas para começar a discutir o Código, mas, novamente, esta ideia de que um diploma vai resolver de um dia para o outro, apenas vai trasladar o problema”, defendeu o arquiteto.

AH // ZO

By Impala News / Lusa

Impala Instagram


RELACIONADOS