Quem está doente também precisa de “mimos”

A doença traz, inevitavelmente, tristeza, mas esta pode ser atenuada com “mimos”, desde uma sessão de maquilhagem a um programa de exercício físico, para reforçar a autoestima de quem está doente.

Quem está doente também precisa de

Aconteceu no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, visitado pela Lusa a pretexto do Dia Mundial do Doente. Que se assinala na sexta-feira (11). Mas haverá outras unidades de saúde com iniciativas semelhantes. No Dia Mundial do Cancro, duas dezenas de profissionais de saúde e doentes partilharam dúvidas e experiências. Integradas numa iniciativa que junta os serviços que tratam doentes oncológicos no hospital de Gaia e as associações que lhes prestam cuidados de forma informal. E que, “muitas vezes, acabam por ficar na sombra”, assinalou à Lusa a médica Telma Costa.

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Com 37 anos, a oncologista já teve de enfrentar um cancro. “Afinal, os médicos também ficam doentes”, diziam-lhe, na altura. “É uma doença que não escolhe, atinge qualquer um”, assinala. “Sempre valorizei muito a opinião dos doentes. O que os doentes pensavam, o que os doentes queriam. É óbvio que, a partir do momento em que estou também do outro lado, ainda percebo mais isso”, reconhece. Contando como foi difícil “desligar o complicómetro” da médica e “ser só a doente”. “O sistema de saúde oferece muita coisa. Mas os recursos são limitados e ainda bem que conseguimos ir encontrando soluções fora do contexto do hospital”, realça. Destacando que, “se não fossem as associações e algumas iniciativas comunitárias, ficava tudo muito mais difícil de gerir”.

“Afinal, os médicos também ficam doentes”

Membro da Associação de Investigação de Cuidados de Suporte em Oncologia, Telma sempre valorizou “a voz do doente”. E acha que esta voz “começa a ganhar força” em Portugal. “Começamos cada vez mais a querer ouvir o que os dentes têm para nos dizer”, frisa. As doenças oncológicas têm tido um aumento muito significativo entre a população portuguesa. Sendo a segunda causa de morte (depois das doenças cérebro-cardiovasculares). Durante a quimioterapia, Telma fez um programa supervisionado de exercício físico, para tentar mitigar alguns sintomas e prevenir complicações a longo prazo.

Durante a sessão no hospital de Gaia, uma doente contou que pratica zumba à segunda-feira. E fica “toda partida” o resto da semana. E outra logo acrescentou como agora lhe custam mais três quilómetros do que antes lhe custavam trinta. E a conquista que é “ir às compras e voltar com um saquinho na mão?”, perguntou outra. As profissionais de saúde presentes destacaram as vantagens de “preparar e planear”. Notando que o cancro, sendo um acontecimento traumático e sempre inesperado, tem etapas definidas. E os doentes podem estar mais ou menos “em forma” para os tratamentos.

“Mas estou cá, nove anos já estão ganhos. As tristezas não pagam dívidas”

Fernanda Camacho acaba de chegar de uma aula de pilates. E, orgulhosa, mostra a musculatura das pernas, rijas de 69 anos de vida. O cancro apareceu-lhe aos 60 e o “medo” é uma constante. “Mas estou cá, nove anos já estão ganhos. As tristezas não pagam dívidas”, remata. “A gente aprende tanto com o cancro, o cancro ensina-nos muito. É um aprendizado que… não queria ter passado por ele. Mas já que passei, aprendi muito e valorizo muito”, diz. Esteticista num salão que “o cancro levou”, Fernanda realça como foi importante conhecer a associação Careca Power. “A gente sente-se muito triste, muito só, muito desacompanhada. (…) É preciso falar com gente que nos entenda, que esteja a passar pela mesma coisa”, explica.

“Uma vez Careca, para sempre Careca”

A Careca Power preencheu “uma lacuna” a que amigos e família não podiam dar resposta. “Elas entendiam-me. Quando dava um abraço, recebia um abraço com a mesma intensidade”, conta. Liderada por Paula Barrerinhas, a Careca Power nasceu de um grupo de partilha na rede social Facebook. Entre “carequinhas”, mulheres que tiveram ou têm cancro. “Quis conhecer casos como o meu, que me dessem esperança”, justificou. “O tipo de ajuda de que precisamos as associações muitas vezes não podiam dar. Empatia, carinho… só quem já passou por isso consegue ter”, disse à Lusa. “Uma vez Careca, para sempre Careca”, resume Fernanda, explicando que isso “é ser alegre, é viver a vida, é não baixar os braços porque se tem um cancro”.

Fernanda Gonçalves, voluntária da Liga dos Amigos do Centro Hospitalar de Gaia, faz-nos sinal para que a sigamos. Abre a porta de um mini-salão de cabeleireiro. Apetrechado com tudo o que é preciso para tratar de cabelo e até das mãos e dos pés. É ali que, de costas para o espelho, as mulheres com cancro se despedem do cabelo, depois de um plano traçado passo a passo, “como se fosse a prova de um vestido”. “O corte do cabelo vem de dentro para fora, não se marca”, assinala Fernanda. Contanto que muitas mulheres mantêm a esperança de que “o seu não caia”.

“A Fernanda agora percebe mais de mamas do que de dinheiro”

“Muitas nem sequer querem ver”. E, para essas, há perucas de vários tons, escolhidas previamente. Que preenchem de imediato o lugar deixado vazio. Fernanda fala no feminino. “Nestes anos todos, nunca me apareceu nenhum homem”, justifica. Da banca para as agulhas, aproveitando “os tutoriais da internet”, Fernanda fez da reforma voluntariado, tricotado em gorros e turbantes que aquecem as carecas postas a nu pela quimioterapia. Abre o armário para mostrar umas quantas caixas com próteses de silicone e sutiãs próprios. “A Fernanda agora percebe mais de mamas do que de dinheiro”, brinca a diretora técnica da Liga, Carolina Viana.

O assunto é sério, mas o tom é de humor, que, naquele “espaço de partilha” mesmo quando se chora, “chora-se a rir”. Antes de, há três anos, o hospital pedir à Liga para centralizar este tipo de cuidados, as doentes oncológicas andavam de serviço em serviço para conseguirem tudo o que necessitavam, recorda Carolina. Com uma centena de voluntários (forçadamente reduzida com a pandemia), a Liga promove tertúlias, lanches de convívio, sessões de maquilhagem. “São mimos”. Resume Fernanda. No caso do hospital de Gaia, gratuitos e cobertos por prescrição. Os “mimos” acabam também por ser momentos de “apoio psicológico”. E de “puxar pela autoestima”, reflete. Recordando o marido que, vendo dali sair a mulher, penteada e maquilhada, lhe disse: “Ó mulher, estás linda, pareces a Madonna.”

A doença que os une

Joaquim Alves, enfermeiro de 64 anos, chega primeiro ao Parque Urbano de Miraflores. Dali a minutos aparece Marco Pedrosa, engenheiro civil de 34 anos. Até agora, em parte por causa da pandemia, têm falado só ao telefone. A pedido da Lusa e a pretexto do Dia Mundial do Doente, que se assinala na sexta-feira, vão finalmente conhecer-se pessoalmente. Apesar de já saberem muito um do outro. Tanto, e tão íntimo, que já se dizem amigos. Os 30 anos de diferença faziam reduzida a probabilidade de se conhecerem um dia. Mas a doença de Chron veio baralhar essas contas. Joaquim é mentor e Marco mentorado de um projeto piloto que a Associação Portuguesa da Doença Inflamatória do Intestino (APDI) estreou há um ano. Com o objetivo de pôr “pessoas que vivem há mais anos com a doença a ajudar pessoas recém-diagnosticadas com a mesma patologia”, explica Ana Sampaio.

“Tentamos também que as pessoas aprendam a gerir a sua própria doença

A presidente da APDI frisa que não se trata de apoio psicológico nem conselhos clínicos sobre tratamentos ou nutrição. Para isso a associação disponibiliza outros serviços. “Trata-se mais de uma vivência social. Por exemplo, algumas pessoas têm dúvidas se hão de dizer ou não no trabalho que têm a doença. Como é que hão de interagir com os amigos. ‘Posso ou não ir a um restaurante? E depois se no restaurante não me sinto confortável com a comida que me é apresentada?'”, exemplifica. É para estas dúvidas que são úteis as “dicas” de “pessoas que vivem há mais anos com a doença e já sabem como hão de fazer”.

Na sua página na internet, a APDI destaca que o diagnóstico de uma doença crónica implica um processo de reorganização do quotidiano. E que os estudos demonstram que o bem-estar emocional dos doentes é fundamental nessa adaptação. “Tentamos também que as pessoas aprendam a gerir a sua própria doença. É muito importante formar e informar, para que realmente consigam gerir e ter qualidade de vida”, realça Ana Sampaio. Criada há 27 anos, numa altura em que “havia muita falta de informação sobre o que era a doença de Chron, o que era a colite ulcerosa”, a APDI tem como lema “ser feliz com doença inflamatória do intestino”.

“Queremos que as pessoas vivam com qualidade de vida. E que sejam felizes”

“Sabemos que temos a doença, que é uma doença crónica, mas queremos que as pessoas vivam com qualidade de vida. E que sejam felizes e sonhem igual a qualquer outra pessoa da sua idade em fazer o que lhes apetecer”, destaca Ana Sampaio. O abraço de Joaquim e Marco é apertado. Acompanhado de palmadinhas nas costas. Sentados um banco de jardim, a conversa gira em torno da alimentação. Tema omnipresente para os 24 mil doentes com doença inflamatória do intestino registados em Portugal. “Estás com bom ar”, elogia Joaquim. “O Joaquim também tem muito bom aspeto”, devolve Marco, confirmando que tem estado “bastante bem nas últimas seis semanas”. Marco, que sempre teve algum cuidado com a alimentação, eliminou açúcares, alimentos processados, álcool. “Praticamente tudo” o que achava que lhe poderia fazer mal. Quando deu por ela, “estava a comer salmão, arroz e bananas todos os dias”, recorda.

Agora, vai “pondo umas frutas e variando a dieta”. Porém, confessa, ainda não arrisca demasiado. Até porque “basta pôr qualquer gordura e é logo um desarranjo”. Ainda recentemente, não resistiu à picanha, um dos seus pratos prediletos. E isso resultou na “última minicrise”. Joaquim concorda que a dieta de Marco é “muito restritiva”. E dá graças por poder consumir o azeite das “oliveiras lá da terra”. No seu caso, é “muito sensível” aos condimentos e não tolera tomate cru, só refogado. Há dias foi buscar um coelho grelhado e ofereceram-lhe “um molho” — não teve uma crise, mas andou com “desconforto” uns dias. Uma doença é “um ponto em comum” e Marco, atordoado com a notícia, seguiu a sugestão de uma médica e foi conhecer a APDI. Aderindo ao programa de mentoria, atualmente com 12 mentores e nove mentorados.

“Foi tudo centrado na covid e os outros doentes, nomeadamente os doentes crónicos, ficaram um bocadinho sem atenção”

“[O Joaquim] tem-me ajudado todos os dias. Nem conhecia a doença de Chron. Não tenho ninguém próximo, sejam amigos ou familiares, que tenha doença de Chron. Caiu-me, na altura, quase como uma bomba. Tive um mau bocado, no início”, partilha Marco. Movido pela “oportunidade de ajudar outra pessoa”, Joaquim tem outra mentorada. Que “passou um calvário” até conseguir um diagnóstico e “isto é referido por muitas pessoas que têm a doença de Chron”. Enfermeiro que é, não deixa de apontar a “péssima” acessibilidade do Serviço Nacional de Saúde. Que “globalmente é bom”. E as “assimetrias” nos cuidados. “Sou um grande defensor do Serviço Nacional de Saúde. Mas há muito trabalho ainda a fazer e muitas limas a serem limadas. Para haver tudo isso, a participação dos cidadãos, toda a gente ter os cuidados a tempo e horas… Há um certo número de coisas que têm de ser melhoradas”, advoga.

“Notei que a disponibilidade dos profissionais [de saúde] ficou muito afetada pela covid. Porque foi tudo centrado na covid e os outros doentes, nomeadamente os doentes crónicos, ficaram um bocadinho sem atenção”, realça. Mentor e mentorado já tiveram várias formas de interação. Começaram no WhatsApp, depois passaram para o telefone. Inicialmente, as mensagens eram muito centradas na doença, nos tratamentos, nas complicações. Mas a conversa foi-se alargando à família, ao trabalho, às diversas esferas da vida social. Atualmente, Marco leva “uma vida completamente normal”. Que inclui “desporto e um trabalho exigente”. E já são “mais os altos do que os baixos” que partilha com o Joaquim. “Hoje em dia, já tenho o Joaquim como um amigo. A conversa foi fluindo e fomos falando de tudo, não só da doença, quando é necessário. Mas doutras coisas, como fazem os amigos”, normaliza Marco. “Um dia destes vamos jantar”, despedem-se.

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